– Você pesa um bocado hein.
– É porque sou feito sssshhhhuuuuup de material resistente sssshhhhuuuup veja essas teclas, marfim puro! sssshhhhuuuup.
– Desculpe-me, mas não dá prá parar com esse ruído de aspiração de fole?
– É só você tirar sssshhhhuuup o dedo de cima desse botão vermelho. É ele… sssh… Ah obrigado. É ele que abre o fole e provoca esse ruído.
– Teclas de marfim, fole de couro de porco…
– Não. O couro de porco, bem trabalhado, pode ficar bem fino e maleável, bom, portanto, para foles mas, o meu foi construído com couro escareado de búfalo.
– Escareado?
– É. Significa “raspado”. Ao ser curtido, o couro, é também raspado, ou escareado, até atingir a espessura ideal para a construção do fole.
– Ahn…
– À cada tecla corresponde um conduto com uma palheta. Acionada a tecla abre-se uma válvula, o ar penetra no tubo, faz vibrar a palheta e vocês ouvem a vibração.
– Assim?
– Freeeeemmmm. É. Eu só tenho três oitavas e essa é o si da penúltima.
– Aguda não?
– Na última oitava é mais ainda.
– Aqui?
– Friiiiiiiiimmmm. É
– Peguei você prá estudar um pouco estas notas. Sabe, de música eu não entendo absolutamente nada. Só sei que o dó é dó porque ele está antes de duas teclas pretas.
– São as semitonadas. Se você sobe, de um som grave para um agudo, passando por um semitom ele é “maior”; se, ao contrário, descemos de um agudo para um grave ele é “menor”, portanto, esta tecla aciona a palheta cuja vibração nos dá um som chamado ré “menor” ou “maior”, dependendo da direção do som no momento em que a nota, tambem chamada de “sustenido” ou “bemol”, é exigida. Olha, não confunda as expressões “subir” e “descer” com o movimento que se faz em meu teclado. Quando estamos “subindo” dos graves para os agudos – na escala musical – em minhas teclas, estamos “descendo”. Ao piano, cujo teclado é, aparentemente, igual ao meu, “sobe-se” isto é, vai-se do grave para o agudo, – em escala musical -, da esquerda para a direita. Bom, reconhecer a nota, em um instrumento de teclado como o meu, é, relativamente fácil, mas, e em outros instrumentos? Como é que você descobre qual é a nota.
– Eu não descubro, eu danço. Tenho um bom ouvido, isto é, sou capaz de distinguir, dentro de uma sequência, uma nota desafinada mas, pelo som, não tenho condições de saber se é um ré, um fá, ou um mi. Na verdade, o que eu estava querendo é o seguinte: penso que as letras musicais começaram como odes ou poesias simples, com as quais contavam-se estórias, relatos de grandes batalhas, casos de amor ou, ainda, fofocas locais sobre maridos enganados e mulheres não muito bentas.
– Hum…
– Depois os trovadores resolveram acompanhar as estórias com alguns instrumentos, mais tarde as estórias e a música passaram a formar um conjunto interdependente em que a música contém uma linha melódica sobre a qual são distribuídas as palavras – fonemas – formando o que, convencionalmente, chamamos de “letras musicais”.
– Hum.
– Desenvolveram-se então os gêneros em que as letras são partes integrantes das músicas como as óperas, as modinhas e muitos outros.
– Hum.
– Hum… hum… hum… que diabo, tão cheio de sons e só sabe dizer hum?
– Estou gostando da sua descrição. E os sons de que estou cheio são virtuais, isto é, existem apenas quando alguém, preferencialmente que saiba o que está fazendo, pressiona minhas teclas enquanto me estica e me encolhe… êpa… eu deveria dizer: “enquanto aciona meu fole”, para não suscitar idéias meio marotas.
– Eu não estou descrevendo coisa nenhuma. Nem conheço história musical para me atrever a tanto. O que estou fazendo é…
– Descrever o que ocorreu com a música.
– Não. Tentando só lhe dizer o que penso.
– E porque andou por caminhos tão longos quanto desconhecidos? Porque não disse, de cara, em que está pensando?
– Bom… uma coisa puxa a outra e eu vou indo…
– E eu ficando… sem saber o que você quer.
– Seguinte: vejo as letras como cartas, ou recados, esperando resposta.
– Tão simples assim?
– É.
– Caramba! Eu pensei que você estava com a intenção de instituir um curso de história da musica, dos instrumentos, dos ritmos…
– É, sou prolixo mesmo.
– Não. Você é o próprio paradoxo, hiper-explicativo mas hipo-esclarecedor.
– Vá lá, mas agora você descobriu o que eu estou querendo?
– Não. Você me disse o que está “pensando”, não chegou no “querendo”.
– Seguinte:…
– Gosto desse “seguinte”, é sinal de que você vai explicar mesmo.
– Estou querendo fazer letras que respondam as que estão por ai.
– Eu não disse? É ótima idéia, mas como fazer isso se você não conhece música?
– Não preciso, basta utilizar a melodia já existente nas letras a que eu vou responder.
– E o seu advogado é bom?
– Que é que tem meu advogado?
– Tem que ser muito bom prá defender você das acusações de plágio.
– Plágio?
– É. Ou você não sabe que existem “direitos autorais”?
– Claro que sei, mas isso seria feito com a devida autorização.
– E você conhece algum autor capaz de topar um arranjo desse tipo?
– Mas que sanfoninha chata é você hein.
– Espera. Atacar a minha dignidade “acordeônica” não vai resolver o seu problema.
– Ah!!! Você pode me chamar de “paradoxo” mas, basta um “sanfoninha” dito sem intenções ofensivas e começa a ornejar.
– Deixa pra lá… conhece?
– O que?
– Alguém que concorde com esse tipo de trabalho?
– Claro que não. Eu estou só pensando, por enquanto.
– Esse o problema deste país. Se, de cada mil palavras, pensadas ou ditas, uma só se transformasse em ação… que produção teríamos!!!
– Você não entendeu. Estou pensando quais letras poderiam ser respondidas.
– Você mesmo disse, há pouco, que “todas podem”, logo…
– Sim… eu sei… mas… estou tentando encontrar as que ofereçam maiores possibilidades…
– Sei… as mais fáceis.
– Não, necessariamente.
– Sei…
– Quer saber? Eu vou acabar enfiando você na caixa…
– Até pode, só que isso não é solução.
– Não, não é, mas me livro do seu sarcasmo.
– Sarcástico, eu? Me esbaldo para abrir seus olhos quanto às pontes a serem atravessadas… pontes não, que neste caso não passam de pinguelas e você me vem…
– Olha ai. Não é o que estou dizendo?
– Mas o que é que você quer? Que eu o pegue no colo e o embale?
– Seria engraçado. Um acordeão com um homem no colo…
– E eu é que sou sarcástico. Ah… vamos lá. “Tardes em Lindoia”, Zequinha de Abreu, conhece?
– Conheço… e daí?
– Como “e daí”? É letra passível de resposta?
– Ahn… é sim. Mas preciso estudar o tipo de abordagem a ser feita, se a letra é só do Pinto Martins ou teve alguma colaboração do Zequinha…
– E… porque não faz isso?
– Ahn… vou fazer.
– Agora?
– Porque devo fazer isso agora?
– Me põe dentro da minha caixa, por favor. Esta conversa não vai levar a nada.
– E devia levar à alguma coisa?
– Ao estudo da letra para a composição da paródia… ops, digo, resposta. Desculpe o ato falho.
– Está bem… vamos ver…
– Frim, frim ru, rum frim frim ru…
– Para, para com isso!!!
– E porque?
– Eu não conheço notação musical e não poderia, mesmo que você estivesse tocando bem, transcrever o que você está tentando tocar.
– !?!
– Além disso vou trabalhar com a letra, a melodia vem depois.
– Mesmo que eu estivesse “tocando” bem o que eu estou “tentando” tocar”? Eu, um legitimo Hering de mil novecentos e trinta e tres, o melhor ano de fabricação, ano em que ainda se utilizavam os melhores materiais importados da alemanha para a produção de palhetas… eu…? Eu, um 12 baixos, com um som comparável ao dos melhores orgãos das grandes catedrais européias, eu… eu “ten – tan – do” tocar?
– Desculpe o ato falho. Eu quis dizer: “tocando”.
– Hum… vai em frente. Analisa a letra, vamos. Eu paro de “tocar”.
– Espera ai. Acho que foi uma esperteza sua sugerir “Tardes em Lindoia” de Zequinha de Abreu e Pinto Martins. Sabia que uma de suas mais antigas interpretações foi em 1930 por Celestino Paraventi? Creio que essa foi a data em que Zequinha e Pinto Martins criaram essas maravilhosa valsa.
– Porque voce “acha” que foi uma esperteza minha essa escolha?
– Porque é uma letra, eminentemente, descritiva. O autor descreve um crepúsculo em Lindoia a um “anjinho dos sonhos meus”, que eu não sei quem poderia ser.
– Sim. Eu sei. E daí?
– Daí que não há o que responder. É uma verdadeira ode ao flamífero poente, quase visível em: “… longe, no horizonte calmo, as nuvens se incendeiam, num incêndio de luz…”.
-E se você prestar atenção verá que a melodia, à partir de: “longe”, vai em crescendo e atinge o clímax em: “incêndio de luz”.
– … tenta esclarecer o que está sentindo quando diz: “… vibra e se exalta minh’alma, na sensação que a seduz…”. Mostra a bucólica beleza de Lindoia com: “… um plangente sino toca, chamando à prece a todos os que ainda sabem crer …” e finaliza, revelando a própria alma, ao confessar: “… e eu, que também sonho e creio, beijar tua linda boca para acalmar o meu sofrer…” .
– Entendesse de música e você perceberia a perfeição da melodia. Traduz, em sons, as imagens descritas pela letra.
– Não é preciso entender. Basta sentir.
– E então… vai responder?
– Mas… o que dizer ao autor de uma tal poesia?
– Eu não sei. Quem garantiu poder responder a “todas” as letras foi você.
– …
Gosto muito do artigo do seu site. Estarei acompanhando sempre.Grata!!!
Muito obrigado Vera, estarei atento aos seus comentários.