O senhor me desculpe, mas eu não pude deixar de ouvir seu diálogo com o Botão
Tá bom, eu desculpo, mas quem é você?
Ah! Eu sou a parede e é sabido que nós, as paredes, temos ouvidos. Todavia, se me perdoa a sinceridade, nem era necessário. Os senhores falavam tão alto.
Já sei. O botão me transformou em pó de borboleta e agora vem você varrer o pó para longe.
Oh! Não senhor. Eu não concordo com o Botão e muito menos com a linguagem indelicada, rústica mesmo, usada para se dirigir ao senhor.
Hum… Obrigado. Mas… Acho que, em algumas coisas, ele tem razão.
Eu discordo, mas é possível. Entretanto, o fato de ter razão não confere, a quem quer que seja, o direito de ser irascível. Além disso, há outro fato a ser considerado.
Sim?
Até o mal educado botão percebe que é muito bom quando o senhor vem para cá pensar enquanto olha a paisagem.
Eu não sabia que vocês podiam ouvir pensamentos também.
E não podemos.
…
Os pensamentos são… Captados… Sentidos.
Hum… Então os pensamentos são emanações? E podem ser recebidos em sua totalidade? Quero dizer, vocês recebem palavras?
Bem, eu posso responder por mim. Recebo cada palavra, ou imagem, construída em seu cérebro.
Ufa! É bem perigoso isso, não?
Seria, se eu pudesse sair por aí contando a qualquer pessoa o que captei em seu cérebro.
E não pode porque?
É uma questão de ondulação. Eu não poderia repetir as ondas emanadas pelo senhor e colocá-las dentro de uma extensão perceptível por outra pessoa. Em outras palavras. O padrão ondulatório criado pelo senhor é específico e nele cabem somente os seus pensamentos.
Então você apenas recebe e devolve meus pensamentos?
Eu não diria que é tão simples, mas… o princípio é esse.
Então eu não estou conversando e sim monologando.
Também não. O monólogo pressupõe linearidade e o diálogo é dinâmico.
Mas eu posso criar um monólogo absurdo e aí onde ficaria a “linearidade”?
No próprio absurdo. Ele seria a linha de interligação dos assuntos, ou palavras.
E o que é que, em sua opinião, é dinâmico em um diálogo?
A diversificação de enfoques sobre um, ou mais assuntos.
E eu não sou capaz de enfocar um ou mais assuntos de maneiras diversas?
Claro que é, desde que haja um estímulo externo.
Então estou monologando pois, não vejo que estímulo externo pode haver aqui, uma vez que, segundo você, “eu crio um padrão ondulatório onde só cabe aquilo que eu já conheço”.
As vibrações, emitidas pelo senhor, são modificadas por mim, ao refleti-las. Eis aí o estímulo externo. Esse estímulo o fará lembrar-se de palavras, ou imagens, relativas ao assunto, levando-o a um enfoque diverso sobre ele.
Ainda sou eu relembrando palavras e imagens ditas e descritas por mim.
É verdade. Tenha em mente, porém, que a relembrança ocorre graças ao estímulo externo.
Devo então agradecer a terceiros, incluindo você, por eventuais mudanças em meus pontos de vista?
Tanto quanto agradecer à montanha pelo eco de suas palavras.
Sei lá. Não estaremos levando longe demais as possíveis diferenças entre o diálogo e o monólogo?
Talvez, mas a verdade é que, pela primeira vez, eu vejo alguém tentando estabelecer os fundamentos dessas diferenças. O senhor já viu algum estudo sobre o assunto?
Pensando bem, não. Como ator que sou – ou fui – encaro o monólogo e o diálogo sob pontos de vista teatrais. Detenho-me a estudar-lhes o conteúdo e a forma em busca de soluções teatrais. As determinantes embasadoras de cada um, caso existam, nunca participaram de meus objetivos. E digo mais, tais diferenças, posto que existam, poderiam interessar, quando muito, a glotólogos, filólogos, etnólogos e outros ólogos por ai, não vejo, porém, que importância teriam para mim.
O verbo se fez carne e habitou entre nós.
E eu não sei disso? Eu que, durante estes quase cinquenta anos, tomei o verbo por empréstimo, estudei à exaustão cada frase, palavra ou vírgula com o objetivo de, interpretando-as, torná-las compreensíveis e claras a quem as ouvisse de mim? Eu, que fiz rir com os textos de Moliére, chorar, com as palavras de Alejandro Casona, arrepiar-se com os versos trágicos de Shakespeare, deleitar-se com os de Edmond Rostand ou os de Júlio Dantas? Eu que choquei com Nelson Rodrigues, e obriguei a pensar com Guimarães Rosa? Meu Deus, quantos outros autores poderia ainda citar? Eu que fiz do perfeccionismo não apenas uma baliza, mas a própria essência de minhas interpretações, posso não ter sido bem sucedido mercê da ausência de tempo em alguns casos, de conhecimentos em outros e de capacidade em muitos, jamais deixei, porém, de empenhar-me com todas as forças de que sou capaz.
Não se exalte por favor! Conheço todo o seu esforço, suas frustrações, seus desesperos porque, através do senhor, sou testemunha de cada detalhe do seu trabalho. Suas lembranças vibram como luz cambiante sobre mosaicos coloridos. Quando o senhor pensou em Edmond Rostand, Júlio Dantas e Guimarães Rosa foi como luz intensa, através de cristais, incidindo em determinados mosaicos.
É… Acho que é isso mesmo. Agora, usando essa imagem, posso dizer que, cada mosaico, embora faça parte de um todo, tem particularidades que o torna belo, vibrante e único entre os outros.
E o que faz o senhor com todas essas lembranças?
Nada! Apenas acalentam meu ego nestes tempos em que me é difícil representar para câmeras ou no palco.
Sentindo-se velho?
Não. Apenas um pouco cansado. Antes eu procurava autores, produtores e etc., hoje espero que eles me procurem , mas, em um ator, este tipo de atitude é um suicídio profissional.
Sabendo disso porque não muda?
Teimosia, eu acho. Egocentrismo, talvez. Penso que sou bastante bom, no que faço, para ser procurado. Temo, porém, ser o único a pensar assim.
Deprimido?
Não. Meditativo só.
Quer mudar de assunto?
Hum… próprio das mulheres. Maternalismo.
Quem? Eu? Mulher?
É! Você não é “a” parede.
Ah! Isso? Sou “a” como poderia ser “o” parede. O artigo que femininaliza o meu nome foi colocado por algum filólogo glotologista pornográfico que viu em mim, não sei onde, algo parecido com o sexo feminino. Devia ter uma mulher bem feia o tal glotologista.
Mas a sua voz e seu modo de falar são bem femininos.
O senhor é que, por acreditar em palavras, me percebe assim. Apelidar objetos inanimados de “feminino” ou “masculino” é apenas um auxílio à língua e o senhor, tão bem quanto eu, sabe disso. Aliás, o mar, com todo aquele poder e força, para os irlandeses é feminino e, para os espanhóis, sangue também é feminino… eu só queria saber porque, os religiosos, de todo o mundo e em todos os tempos, acreditam na nformação de que Deus é masculino. O senhor pode me dizer?
Não, mas me situo um pouco mais a frente. Os homens não só sexualizam, mas plularizam Deus multiplicando-O. Deuses e Deusas ocupavam, no inicio, algumas coisas; o fogo, o trovão, o raio, os ventos, etc. e etc., passaram depois a viver no Olimpo e hoje povoam o cosmo. Quero ver para onde vão após os Hubbles, os Herschel, os Odin e outros telescópios ja existentes e os que ainda serão colocados no espaço. Nos, “locadores dos Deuses”, vamos ter que arranjar propriedades fora do universo.
E o senhor acha que pode existir algo alem do universo presumido?
Se não existe precisaremos criar para alojarmos nossos Deuses e Deusas.