– Até voce?
– Até eu o que?
– Veio aqui cortar um bambu, ou dois, ou mais…?
– Não, um só. É porque faço copos, canecos, suportes para lápis…
– De bambu…
– É… de bambu. Sabe como é… Artesanato. Por quê?
– Nada não. E você vai semear mais bambus, ou alguma outra planta para compensar?
– Ah não… O que eu vou tirar é tão pouco. Só um bambu! E um bambu não vai fazer tanta falta…
– É… “Só um bambu”. Mas um bambu anteontem, um ontem, outro hoje e a inconsciência, a burrice e a estupidez de vocês arrasam minhas margens…
– Pera aí! Quem é que está falando?
– Eu, o rio… Quer dizer… Agora só um riacho.
– Ah! Por isso essa voz marulhante, apesar de fortes as palavras.
– Marulhante?
– É. De água. Água correndo entre pedras.
– Não sabia que minha voz tem essa característica.
– Tem, e é bonita.
– Podia ser muito mais… Minhas nascentes…
– Nascentes? Mais de uma?
– Quatro. A mais importante fica a 60 quilômetros daqui, na Serra dos Camargos e, além dela, nos dez quilômetros seguintes do meu curso, eu recebia as águas de mais três outras. Logo depois fluem, para meu leito, as águas pluviais que caem na vertente leste do Monte Torto.
– Espera… Como é que recebendo tanta água você é tão raso e tão… tão… é… Quer dizer…
– Sujo?
– É. Águas lodosas e com… Com… Esse… Esse…
– Mau cheiro?
– É, mas… Me desculpe… Eu ia dizer… É…
– Fedor?
– É. É isso que eu ia dizer, mas…
– Pois é… E é isso que estou tentando explicar. Até fins do século XVII eu era um rio de volumosas águas límpidas. Águas tão limpas que qualquer ser vivo podia beber com prazer. Vê essas margens, hoje tão altas em relação ao nível de minhas águas? Pois eu, em épocas de cheia, subia muito alem delas e me espraiava pelos campos que, agora, você vê ocupados por essas ruas, casas e edifícios construídos ao longo de minhas margens.
– Mas o que foi que aconteceu?
– Isso!
– Isso o que?
– A ocupação! Quer dizer… Os métodos utilizados por vocês na ocupação de espaço. Ô saudade de quando isso tudo pertencia aos Maxakali, aos Tupinambás, aos Tamoios…
– Mas como é que a ocupação pode acabar com um rio?
– Ao ocupar, ou construir, vocês acabam com as matas e a ausência de matas acaba com os rios. Feito a ferro e fogo, o desmatamento foi tamanho que a nascente do Alto dos Muladeiros secou e a do Morro das Canelas também. As duas restantes, por serem um pouco mais volumosas continuam, mas se não forem protegidas…
– Vão acabar também?
– Exato, mas isso não é tudo.
– Tem mais?
– E muito! As chuvas, que descem hoje pelas encostas do Monte Torto onde a vegetação nativa foi arrancada, carregam terra, areia e detritos para dentro do meu leito diminuindo, com isso, a profundidade da minha calha e, por consequência, o meu volume.
– É… Aqui o barranco é bem alto, mas de águas você é a própria mixaria, só que com um cheiro de lascar.
– Eu sei. E você acha mesmo que minhas águas é que fedem desse jeito?
– Acho não! Estou vendo e sentindo. Águas escuras, limosas, e um cheiro que pelo amor de Deus…
– Pois saiba que esse cheiro vem de vocês!
– De nós!?!?!
– De vocês, sim!!! Da uma olhadinha ali. Não tem uma touceira um pouquinho antes do ponto em que você ia cortar o bambu?
– Que é que tem ali, alem da touceira?
– Uma entre as incontáveis bocas que despejam o esgoto de centenas de residências e de mais outras centenas de estabelecimentos em minhas… Humm… Eu ia dizer águas, mas é possível dar o nome de água a esse líquido viscoso e imundo que se espalha por meu leito e corre em direção à foz onde minhas ág… quero dizer, meu “lodo” se junta com o daquele rio maior?
– Por quê? As águas dele também…
– Também, também, só que, por ser maior o rio, a sujeira é bem menos visível, mas tanto quanto eu, ele está sendo assoreado. Aqui, por enquanto, os bambus e aquele mato rasteiro que cobre a bocarra do esgoto, seguram esses barrancos, mas nas áreas de onde a vegetação foi retirada, a chuva arrastando a aluvião, e os ventos carregando o pó em épocas de seca, fazem o assoreamento.
– Caramba meu! Eu não sabia que a gente faz tanto mal a vocês…
– E em tão pouco tempo!
– Pouco tempo?
– Se considerarmos a idade do planeta, o estrago que vocês fizeram em mim e em outros rios não levou mais que uma isca de tempo para acontecer. O Paraopeba, o Grande, o Das Velhas, o São Francisco, eu e outros fomos formados há milhões de anos.
– Milhões de anos? Puxa você é assim tão velho?
– Velho para você, mas geologicamente falando, eu sou jovem. O Big Bang se deu entre treze e quinze bilhões de anos e a terra se resfriou hã quatro bilhões de anos quando, então, começaram a as modificações geológicas formadoras das montanhas, dos vales e dos rios.
– E daí?
– Bom, vocês, humanos, surgiram há um ou dois milhões de anos, mas a colonização, ou fixação do homem em aglomerados permanentes e altamente modificadores, para não dizer predatórios, começou, efetivamente, há apenas uns míseros vinte mil anos e culminou no período chamado “neolítico”.
– Que raio de período é esse?
– Hummm… É um espaço de tempo que os historiadores calculam entre doze mil e quatro mil anos antes de Cristo e que tem esse nome porque foi quando o homem aprendeu a polir a pedra.
– Ah bom. Pensando bem, a expressão se aplica… “míseros” mesmo.
– Pois bem, se para você vinte mil anos, agora parece pouco em face dos bilhões que a terra já viveu, imagine que a minha morte começou em fins do século XVII inicio do XVIII quando do aparecimento dos bandeirantes e mineradores. Bastaram, portanto, menos de quatrocentos anos de mineração, lavouras, pastoreio e construções para transformar-me de rio de “águas limpas e volumosas” em esgoto a céu aberto. Trezentos anos… Trezentos anos apenas para adoecer e mais alguns para morrer, como estou morrendo, por culpa de voces!
– Lamento por você e quero pedir desculpas…
– Não! Não lamente “por mim”! São vocês que estão perdendo sua fonte de vida!
– E… Podemos fazer alguma coisa?
– Podem, mas vocês tem que correr… Veja o Danúbio que nasce na Floresta Negra, O Pó, que atravessa o norte da Itália, o Sena de Paris, o Volga na Rússia e outros que foram agraciados com limpeza, contenção de esgotos e outros tratamentos tornando-os mais limpos, navegáveis e, alguns, até piscosos… Enquanto que aqui o Das Velhas, cuja nascente é ali na Cachoeira das Andorinhas em Ouro Preto, o Velho Chico em que flutuaram as embarcações dos bandeirantes e cujas nascentes estão sendo dizimadas, o Grande, o Tietê “Estrada das Entradas” e todos os outros estão em completo abandono… Vocês têm que correr, se quiserem salvar suas fontes do mais precioso liquido… Têm que correr porque, até agora, se fez muito pouco. Há muitos e muitos rios a serem tratados e matas, muitas matas, a serem protegidas ou restauradas. Corram, corram, ou não haverá mais para onde correr.