… Não sabes então quem sou!? E ousas molhar-me com essa água pejada de cloro?!?! Deixa-a em descanso para que o cloro se dilua e… melhor… traga-me água filtrada… ou, ainda, agradar-me, se o queres realmente, é o que há de mais fácil. Encha, com água fervida, um grande vasilhame de prata…
– Mas onde eu vou arran…
– Cala-te… As minhas solicitações não devem e não podem ser alvos de tuas considerações… Basta que as obedeça. Emanam de mim e isso as faz indiscutíveis.
– Perdoai-me Excelência eu…
– Basta! Ouve-me com toda a atenção de que, por ventura, és capaz porque, agora, é ordem. E curva a tua cabeça diante de mim!!! Se te permito desdobrares a espinha, para melhor desempenho do teu trabalho, nem por isso te é permitido olhar-me de frente.
– Mas Majestade, sois.. tão… digo… é… pequen…
– Põe-te, então, de joelhos, biltre infeliz, e poderás ver-me, como deves, em toda a minha glória: de baixo para cima.
– Perdão Majestade, mas ainda assim…
– Roja-te ao chão então, pedaço d’asno.
– Mas aí não poderei aguar-vos, Majestade.
– Morrer à sede é melhor!!! Fere-me a nobreza, e põe-me em risco a saúde, essa abominável mistura de hidrogênio, oxigênio e cloro a que, pomposa mas enganosamente, dás o nome de água. Ordeno-te, pois: toma um grande vasilhame, encha-o com água filtrada, ferva-a, espera esfriar, agita-a bem para oxigena-la, coloca-a em um grande vasilhame de prata, deixa-a ao sereno e, pela manhã, aos primeiros clarões do dia, antes porém que o Sol nasça, faz um ramalhete de rosas e, com ele, vem aspergir, sobre meu Augusto Ser, essa verdadeira ambrosia. Cuida, porém, de a não tocar após fervida, ou permitir, exceto às rosas, que coisa alguma a toque, para que não se torne impura. Faz isso com o empenho da tua vida, pois, é melhor, e mais nobre, que a percas em favor de mim do que, caso me não obedeças, perde-la, ignominiosamente, às mãos de um carrasco.
– Majestade, perder a vida é ruim de qualquer jeito.
– Cala-te ínfima e ignóbil criatura. Fecha esse desastroso esguicho, vai e cumpre o que te ordenei
– É que a tal vasilha de pra..
– Avia-te, mandrião, antes que eu ponha meus guardas a chutarem-te o traseiro até que desapareças do meu nobre campo de visão.
– Pois não majestade, está fechado o esguicho e eu estou indo. Só não sei onde vou achar a vasilha…
– Ainda estás aí, estafermo?
………………………………………………
– Ainda bem que esse diabo dessa coisa não pode andar. Já imaginou esse tomateiro atrás de mim, com essa linguagem Shakespireana, e essa voz Cidmoreireana, exigindo água em vasilhames de prata? O que será que a Zilah andou dizendo a esse merdinha de arbusto?
– Não foi ela. Foi o senhor…
– Tá delirando ô limoeiro? Eu estava aqui, sem pensar em nada, aguando as plantas todas e, de repente, o bostinha….
– Ele anda repetindo, a todas a plantas, as palavras que o senhor…
– Espera aí… se, daqui, você pode ouvi-lo…
– Fique tranqüilo que, daqui, nem eu o ouço nem ele pode nos ouvir. Sei que ele está azucrinando a turminha que o cerca porque, se o senhor prestar atenção, verá, ao lado dele, um cajueiro, pouco mais para cá um quia-beiro, a seguir um pé de couve, mais próximo de nós um mamoeiro e entre o mamoeiro e eu está a minha amiga mangueira…
– Quer dizer que a fofoca…
– Perdão mas…
– … digo… o assunto, vai do tomateiro ao cajueiro, do cajueiro…
– Num sussurro chega onde estou.
– Mas o inverso então pode ser verdade…
– Não. Eu confio na mangueira.
– Hum… e a mangueira no mamoeiro, o mamoeiro confia na couve, a couve…
– Possível, mas pouco provável.
– Não sei não… melhor cuidar para não dizer algo de que possamos nos arrepender. A hipermegalomania daquele… ahn.. arbusto, alimenta uma linguazinha bem afiada…
– Culpa sua.
– Mas o que foi que eu fiz?
– Há dois ou três dias o senhor estava, naquela varanda, explicando, a um neto seu, o surgimento dos reinos animal e vegetal. Embora o conteúdo da explanação fosse já de nosso conhecimento, sua voz, muito bonita – se me permite o elogio e, …
– Obrigado. Exercitá-la faz parte do meu trabalho.
– … um tanto soporífera, se me perdoa a crítica…
– Ahn… fique à vontade, as pancadas na vaidade tonificam a humildade.
– Sua voz, dizia eu, com entonações claras, parecia enaltecer nossas origens, qualidades e ancestralidade. Explicava, o senhor, que nós, as plantas, segundo os botânicos, dividimo-nos, de acordo com as características que apresentamos, em sub-reinos, tipos, grupos e etc..
– Ahn… então foi isso…
– Foi. Mas não só. Piorou quando o senhor mencionou as origens. Ora, o Tomateiro, como uma considerável parcela dos seres existentes, pensa que, além das características físicas, pode herdar também as qualidades abstratas dos lugares em que nascem. Julgar-se, partindo daí, o nobre herdeiro de um governante inca, para a fértil imaginação do Tomateiro, foi fácil.
– Mas eu disse que há, “indícios” de que ele tenha se originado nas Américas. Certo, mesmo, só o fato de ele ter sido exportado, em torno de mil e quinhentos, do Peru para a Europa de onde, no século dezenove, se irradiou para o mundo.
– Foi o quanto bastou. Mas teve mais. O senhor contou a história da pizza Marguerita, prato no qual, oficialmente, o tomate foi usado pela primeira vez, por Raffaele Sposito, em l889.
– É… o pizzaiolo precisava de algo vermelho para desenhar, na pizza, com o recheio, uma bandeira italiana em homenagem a rainha Marguerita, mulher do rei Umberto I.
– E, com isso, o senhor desenhou, na imaginação do Tomateiro, um Príncipe, Rei ou Sacerdote Inca.
– Espera ai, Você disse que nós herdamos os caracteres físicos dos lugares em que nascemos?
– Disse sim. Biológicamente nós, os seres vivos, somos formados a partir de duas grandes vertentes: a herança genética e as matérias que absorve-mos ao longo da existência. Quanto a primeira nada podemos fazer, mas em relação a segunda podemos cuidar dos alimentos, da água e do ar que usamos porque eles contribuem, de modo decisivo, para a nossa formação. E é ai que concordo com o Tomateiro. Ele está certo quando diz que o cloro, em quantidades elevadas, nos é prejudicial. Mais a ele do que a mim. Ambos somos arbustos, mas, pode-se ver, sou bem mais robusto.
– Eu também concordo, só não aceito os exageros. Um deles é em relação ao cloro. De fato a água que recebemos é tratada com essa e outras substâncias que a tornam potável, mas depois, quando não se transformam em substâncias inertes ou inofensivas, são retiradas da água. Além disso as quantidades usadas estão dentro dos padrões exigidos pela OMS (Organi-zação Mundial da Saúde).
– Bom… eu vivo vinte e quatro horas por dia ao lado da Mangueira, estamos aqui, seguramente, há uns seis anos e, mesmo assim, ainda há pouco, o senhor achou perigoso confiar nela. E o senhor? Confia em quem lhe dá essas informações? E, ainda que as informações sejam confiáveis, quem pode nos garantir que as quantidades estabelecidas pela OMS são suportáveis por Gregos, Tomateiros, Troianos e Limoeiros?
– É… parece que a conversa afetou você também.
– Afetou sim… e de três maneiras. Passei a me perguntar se o cloro, que vem disseminado na água, é ou não insalubre e, em sendo, até que ponto o é? Segundo: Quando o senhor recordou-me que sou originário da Índia, outro pensamento me assaltou: “Estarei sujeito ao sistema de castas? E se estiver, a qual delas pertenço? E, por último, senti-me orgulhoso quando o senhor citou, corretamente, o meu nome científico: “Cítricus Limonum”. Compreendo, agora, o que deve ter sentido o Tomateiro ao ouvir o dele: “Solanum Tycopersicum”. Nada parecido com “Matchu-Pitchu” mas, suficientemente, pomposo para mexer com ele.
– Pois é… mas se ele pensa que, por agir como um enfezado reizinho, vai me obrigar a agir como um humilde súdito, está muito enganado.
– Estará?
– O que você está querendo dizer?
– Bem… Eu sei que o senhor detesta sair cedo da cama e, no entanto, religiosamente, tem vindo aqui, com esse esguicho, todas as manhãs às seis e, novamente, às dezoito. Se isso não lhe dá prazer porque o faz?
– Porque seria extremamente desagradável, para a Zilah, chegar aqui de viajem e encontrar as plantas morrendo por não terem sido aguadas.
– Desculpe-me, mas o senhor não entendeu bem minha pergunta. A D. Zi-lah se aproxima de nós com o espirito protetor e amoroso, isso, gera atitudes soberanas. O senhor se sente obrigado a fazer o que faz e, isso…
– Gera atitudes subalternas.
– Ou revoltosas. O que, no fundo, vem a dar no mesmo.
– Ora essa, porque?
– Com raras exceções, a revolta é a resposta de quem se julga submetido.
– E quais são as exceções?
– As revoltas ditadas por nobres causas e em favor de terceiros. Isso se não houver envolvimento de interesses menores.
– E no meu caso? O que você sugere?
– Examinar seus sentimentos em relação a nós. A D. Zilah nos ama. E o senhor?
– Tenho-lhes muito respeito.
– Eu sei. Ouço-o pedir licença para colher nossos frutos, curva-se, discretamente é verdade, mas curva-se, e agradece a colheita… A D. Zilah não se sente compelida a agradecer. Agradece com o amor que tem por nós e, com isso, cria um sentimento de reciprocidade amorosa cada vez mais forte e mais amplo.
– Vou examinar isso. Agora, com licença, preciso encontrar uma bacia de prata…
– Agora exijo ouro com ornamentos diamantíferos.
– E você disse que ele não nos ouvia…