O Fio de Linha

O

Eis-me de volta com mais algumas partículas de pó encontradas na velha escrivaninha.

Acho que já lhes contei esta história. Com “h” porque é verdadeira e ocorreu comigo.

Em meus tempos de rapaz, dezesseis, dezessete anos, era imprescindível o uso de terno quando se ia passear.

Da mesma forma que hoje um garoto dessa idade se esfalfa para conseguir uma bermudona com cavalo bem baixo e a bainha abaixo dos joelhos, uma camiseta com um desenho psicodélico e um tênis de marca, assim nós, em meu tempo, batalhávamos por um terno azul-marinho, camisa social branca, gravata prateada ou cinza, sapatos lustrosos e meias também brancas. Ah… não esquecer as  três pontas do  lencinho, igualmente branco,  no bolso superior do paletó. Lencinho e meias deviam ser brancos se o terno fosse azul-marinho.

Pois bem. Paramentado desse jeito, cabelos cortados à Príncipe Danilo, as mãos escovadas quase ao sangue.  (Eu era ajudante de pedreiro e a massa de cimento se entranhava debaixo das unhas. Que houvesse escovas e pasta Jóia a vontade para limpa-las).

Lá ia eu, todo orgulhoso, de pé no estribo do bonde para não amassar o terno.

Ia  fazer o footing nos jardins do Museu do Ipiranga. Hábito comum nos verões daquela época.

Foi quando notei  que uma linda moça, parecendo descendente de japoneses, passou a me olhar com desusada insistência. De um modo que eu julgava “furtivo” passei a retribuir os olhares e maravilhei-me porque ela me demonstrou ter notado. O bonde estava já quase próximo do Museu e eu não conseguia pensar em alguma coisa bem galante para dizer àquela bela moça que, em minha fértil imaginação, já era minha namorada ou algo mais.

Devo ter demonstrado minha ansiedade e minha indecisão porque ela, com um gesto discreto, mostrou-me o fio de linha preso à lapela do meu paletó  deixando claro que era aquele o motivo de sua insistência em me olhar.

Agradeci levando a mão à testa como em uma continência  e, com movimentos que eu julgava extremamente elegantes, saltei do bonde antes que ele parasse no ponto, mas o meu passeio pelos jardins já não me daria mais prazer.

Não era em mim que a bela moça estava interessada. Ela devia ter algum outro namorado mais bonito, mais bem vestido. Eu bancara o idiota achando que ela estava apaixonada por mim quando na verdade era um simples fio de linha branco, sobre uma lapela azul-marinho,  que lhe chamava a atenção, não eu… E isso era arrasador.

Que benefícios me fez aquela bela moça? A intenção dela não era boa? Mas ela realmente me ajudou?

Não se considerarmos que com a sua exagerada atenção criou uma expectativa e depois a frustrou e a frustração acabou estragando o passeio por contaminar  qualquer outra coisa que dele pudesse advir.

Mas se pensarmos que, com seu gesto, a moça mostrou-me um ponto fraco em meu caráter: ”Julgar precipitadamente”, poderemos dizer que ajudou sim.

Não sei se, desde então, aprendi a avaliar antes de emitir juízo, mas tenho tentado. Juro que tenho.

Sobre o autor

Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.

Por Antonio Naddeo

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Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.