Invisíveis e Inanimados

I

Algumas crianças, as mais felizes penso eu, têm amigos invisíveis. Invisíveis para os outros porque elas vêm muito bem esses amigos. Nem sempre tais crianças são compreendidas por pais e professores e aí é que vem o sofrimento, mas disso falaremos em outra ocasião. O que pretendo agora é conversar sobre a similaridade entre o amigo invisível da criança e o amigo inanimado do velho. Sim porque nós, os velhos privilegiados, temos amigos inanimados com os quais discutimos longamente vários assuntos. A TV, por exemplo. Tenho diálogos frequentes com o que aparece naquele retângulo de luz cambiante porque a TV ainda me dá a sensação de que algo vivo está me ouvindo, pois as figuras falam como se estivessem a dirigir-se diretamente a mim.  Mas não é só. Bato longos papos com o meu carro, com minhas ferramentas, com o meu computador… Dias atrás dei uma bronca severa na Marreta que, por tres ou quatro vezes, errou o cabeço do esteio que eu estava fincando na terra para escorar o tomateiro. Ora, já se viu ter que levantar e baixar aquele peso à toa? E, o que é pior, podia ter acertado minha mão! Ela tentou eximir-se da culpa dizendo que o erro foi meu. Fiz de contas que aceitei e paramos de discutir, mas ela sabe muito bem que mereceu a reprimenda. Via de regra, porém, eu e meus amigos inanimados apenas conversamos e os assuntos são bastante variados. Todavia alguns desses amigos me deixam preocupado. Por exemplo, a Bicama da sala da TV está se queixando muito. Nossas conversas eram sempre sobre Morfeu e seus irmãos, isto é, coisas importantes como o descanso, o conforto, o sono, os sonhos, mas agora ela passou a me censurar por não reformá-la como fiz por duas vezes já. Diz que o tecido que a recobre está sujo, que as lonas de sustentação estão frouxas, que o madeirame está começando a perder resistência e etc., etc.. Não sei se tento uma terceira reforma ou se troco por outra, mas qualquer dessas soluções passa por uma longa conversa com ela e ainda não tive a coragem necessária para tanto. Amigão mesmo é o Criado-mudo com espelho! Dia desses voltando do banho e, ainda nu, resolvi ver se havia algo de diferente em minha pele. “Dsik, dsik, dsik” disse ele quando me viu á sua frente. “Que coisa horrorosa! Vai fazer um pouco de ginástica, bebe menos cerveja, come menos pão e carboidratos…”

Fiquei p da vida e criei um tremendo barraco com ele! Quem é o baixinho pra falar comigo desse jeito?  Mas aí, pensei: Pô, o carinha tem razão! Olha lá essa musculatura bamba, essa barriga proeminente, essa pele flácida… e então resolvi fazer exercícios. Devo começar amanhã. Hummm… Amanhã não que é sábado, vou começar na segunda.

Mas voltemos. Acho que nós, os velhos e as crianças, ficamos muito tempo entregues a nós mesmos e daí a busca por companheiros, ainda que invisíveis ou inanimados e, posso garantir: Se o “miolo” não entrar em parafuso nós então ficamos muito, mas muito felizes e mais, os amigos invisíveis e os inanimados ajudam a manter as mentes dos velhos “azeitadas” e atentas as das crianças. Agora o bom dos invisíveis e dos  inanimados é que a gente escuta somente o que quer escutar. Por exemplo: A Marreta poderia ter dito muito mais coisas a respeito da minha negligência no uso da ferramenta, ou o Criado-mudo poderia ser muito mais severo com minha vaidade, mas como sou eu que ponho nas “bocas” deles as palavras a serem ditas é claro que vou ser bastante indulgente. E agora, como não me lembro, embora tenha sido criança, me pergunto: as crianças é que comandam os amigos invisíveis, ou eles têm vida e opiniões próprias?

Sobre o autor

Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.

Por Antonio Naddeo

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Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.