Encontro, entre meus guardados, as informações sobre a montagem de uma adaptação, para a TV, da peça teatral Anne Christie de Eugene O’Neill. As lembranças, emersas daquele 1957, dão asas à imaginação e construo um pequeno delírio com final realista:
O que vemos pode não ser o que vemos…
Ainda é possível perceber-lhe o leito, arenoso em sua maior parte e eivado de rochas arredondadas nos desníveis em que, há tempos, rumorejavam ruidosas e espumantes corredeiras.
Imperam o silêncio e a quietude.
O solo, sob a luz de um sol quase nascido, mostra uma aridez desesperadora, embora, aqui e ali, o avermelhado do chão seja quebrado pelo tom marrom de um ou outro arbusto cujos caules e galhos retorcidos são cobertos de folhas pequenas e espinhos, muitos espinhos.
Essa paisagem, com modificações pouco significativas, vem se desdobrando desde que, há muitos quilômetros, ficou para trás a encosta onde, em tempos remotos, borbulhava a nascente do rio.
Aqui, com estimados 20 ou 25 metros entre barrancas e aproximadamente 50 de extensão, vê-se o que talvez tenha sido um espaçoso remanso cujo ponto mais profundo esteve entre prováveis três e cinco metros a julgar pelas marcas d’água, agora quase invisíveis, nas margens.
Ao longo da margem direita, por grande extensão e com inclinação não muito pronunciada, um aclive leva a amplo descampado também árido e poeirento.
Inverossímeis, porém, as embarcações!
A maior, próxima da margem, aparentando 50 pés fora a fora, uns 30 de boca e 25 de altura, parece estar ali por não mais que uns dias, a seco, enterrada no leito de areia até a linha d’água, mas mostrando as obras mortas perfeitamente conservadas.
De popa à proa, um pouco acima, 2 pés talvez, da linha d’água de carga plena, uma tinta preta protetora dá a impressão de ter sido aplicada recentemente e um verde folha cobre o resto dos costados até o branco das barras que compõe a amurada.
Na proa, um pouco abaixo da amurada, a bombordo, a estibordo e também na popa, em letras vermelhas com bordas de um verde bem escuro, lê-se STREGA, presumível nome dessa embarcação.
Uma espia, de uns 40 pés, vai da popa do grande barco à proa da segunda embarcação, um escaler que, por sua vez, com a carena toda sob a areia como se sobre água estivesse, parece também singra-la arrastado pela espia e não à força dos remos que, ainda presos nas forquetas, estão voltados para dentro do pequeno barco. E, de novo, neste, em ambos os lados da proa, a palavra Strega seguida de “E 01”.
Aqueles barcos, na paisagem em que a areia predomina, surpreendem tanto pela cor viva como por ausência de pó e de areia em suas dependências e reentrâncias. Limpos, limpos como se alguns grumetes, por temerem a ira de irritável comandante, houvessem se esmerado com seus baldes, rodos e vassouras.
Não obstante inúteis, face à ausência de água, os barcos estão ali, desafiando a improbabilidade com sua presença, desafiando a lógica com seu aspecto de recência e desafiando a imaginação com sua imponência na ressequida paisagem. A expectativa provocada é a de que, a qualquer momento, o comandante, em seu traje de serviço e acompanhado pelo imediato aparecerá no tombadilho, irá se postar na proa e, ajeitando uma luneta ao olho, passará a examinar o rio à frente do barco enquanto o imediato, em posição de descanso e com as mãos às costas, aguarda as ordens a serem ditadas por esse estudo.
De onde terá vindo o Strega? Porque foi abandonado? Para onde terão ido tripulação e possíveis passageiros?
Aos poucos o devaneio é esgarçado. Um ruído de motores cresce no silêncio da manhã. No descampado, erguendo nuvens de pó, uma frota de veículos se aproxima e, em pouco, estaciona no largo aclive. O barulho dos motores é gradualmente substituído por vozes ditando ordens. De um ônibus saem 30, talvez 40 homens que, de maneira coordenada, vão aos caminhões, munem-se de escadas, ferramentas, cordas e outros apetrechos e, ao tempo em que uns, com as botas afundando na areia, se dirigem para o escaler, outros chegam onde está o Strega, apoiam escadas em seus costados, sobem para o tombadilho e, com a precisão sistemática de quem já sabe o que fazer, começam a desmontar o imponente barco. Rapidamente as placas de compensado, que formam os costados, vão sendo retiradas revelando uma estrutura de sarrafos que sustenta também um tabuado, o “convés”, por onde os homens transitam durante a desmontagem.
Muitas horas depois, à luz de um sol quase posto, o que se vê é o ônibus e os caminhões, estes agora carregados com tábuas, vigas, e outros materiais, deixando o aclive em direção ao descampado. No lusco fusco do entardecer foi possível ler, na carroceria de um dos caminhões, em letras amarelas bem desenhadas, mas em parte apagadas, as palavras: Cia. Cinem… … …asil.
Os veículos se distanciam no descampado levando, para longe do rio, seus rumores e, agora desmontados, os barcos não barcos.
Em lugar do devaneio só a realidade, em lugar do Strega e de seu escaler, apenas um areal revolvido.
E, sobre a desolada paisagem, voltam a imperar o silêncio e a quietude.
…………………….
Mil novecentos e cinquenta e cinco, novembro, iam para o ar as primeiras imagens oficiais do TV Itacolomi. Eu era auxiliar de maquinária. Ajudava a construir, montar e desmontar cenários.
Dois anos depois, em 57, o Dr. Otavio Augusto Vampré, diretor artístico importado do RS, resolveu montar uma adaptação da peça “Anne Christie”, de Eugene O’Neall, para o Grande Teatro Invictus, marca que, na época, patrocinava o Grande Teatro para difundir sua linha de televisores.
A peça transcorre a bordo de um navio carvoeiro. Nós, da montagem, construímos, ao longo de uma lateral do estúdio, com 18 metros de comprimento, todo o costado de bombordo do navio.
Anne Christie, ou Anna, como no original, foi interpretada pela atriz Clausi Soares. A construção das peças do navio exigiu uma semana de trabalho e a montagem foi feita em um dia. A desmontagem, após o término da peça, durou o resto da noite, O primeiro esboço desenhado pelo Gerson Caetano foi feito em uma folha de papel pardo, o que me deu a impressão de um barco sobre a areia.