Passado

P

Eis que chego a uma altura da vida em que recordar não é apenas mergulhar em lembranças, é algo mais, é quase que uma catarse e com a amplitude que os gregos atribuíam ao termo. Recordo-me de inúmeros momentos de profunda alegria que, vejo hoje, era pura felicidade e há também recordações de medos, de frustrações, de desespero.

Causa-me certo desconforto quando, perdendo-se por caminhos há muito percorridos, minha mente se desliga do presente e vai saltando de lembrança em lembrança na busca de sentir os prazeres e euforia de umas e expurgar os medos e frustrações de outras. Prazeres nem sempre livres de nostalgia e expurgo nem sempre possível.

Se a idade não é o principal é, com certeza, pesado fator nessas ocorrências e outro é o que o Irmão Tôco chamaria de “Sozinhice”. Não se confunda, todavia, “sozinhice” com solidão. Nunca me senti solitário embora permaneça sozinho por algum tempo entre as visitas de meus amigos, filhos e netos. Tenho pensamentos, sonhos e afazeres bastantes para me afastarem de meu próprio umbigo, apesar de, às vezes, como agora, me voltar para ele.

A causa do desconforto, entretanto, é não saber o porquê dessa busca. Sou um homem sensato e sei que, obviamente, o passado não pode ser administrado. Posso, quando muito, inebriar-me com agradáveis lembranças ou tentar me perdoar por ações que, hoje, julgo impróprias, mas é só. Então, qual o propósito dessas insistentes voltas ao antigo cada vez mais frequentes e mais longas?

E descubro: Minha História, repleta de estórias, é uma fonte túrgida de ideias. Gosto de escrever. Gosto de contar casos e gosto, sobretudo, de ensinar porque o meu aprendiz faz de mim um aprendiz.

A Vida, inigualável Mestra, não passa lições. Apenas coloca o estudante diante de situações e ele que se vire para resolvê-las. O bom é que cada solução encontrada trará consequências e estas sim é que devem ser estudadas e guardadas como base para avaliação e escolha das muitas vias que a Vida nos oferece no curso de nossa caminhada.

O relato de uma ocorrência não tem a mesma força da experiência que buliu com o fígado, com o coração e com os nervos de quem a sofreu na pele, mas isso não invalida a lição contida em um relato que, se meticuloso, permitirá, ainda que apenas mentalmente,  a repetição do feito até com possíveis aperfeiçoamentos no refazer e no resultado e, então, relatar o fato, que jaz na memória, passa a ser importante e igualmente importantes os detalhes para a compreensão do fato.

Aí me assalta outro medo: Na busca dos detalhes estarei eu me lembrando de coisas passadas ou o que faço é “criar”, minúcias, particularidades? Não estarei, ainda que de modo inconsciente, dando algumas “ajudinhas” para embelezar as narrações ou torná-las mais favoráveis a mim? Uma parte de mim quer acreditar que não, que as minúcias são lembranças mesmo, mas meu senso crítico me manda ter muito cuidado com essa afirmação. E, voilá, entro em entendimentos comigo mesmo! Gosto de rememorar porque lá, na memória, existem aléias ensombradas, recantos perfumados, caramanchões refrescantes, campos ensolarados, odores e sons extremamente agradáveis onde, e com que, meu espírito se sente feliz. Única condição é abstrair-me dos recantos obscuros, das sendas espinhosas, dos campos de batalha, dos maus cheiros e dos barulhos que, entrelaçados aos agradáveis formam o tecido a que chamamos Passado.

Sobre o autor

Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.

Por Antonio Naddeo

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Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.