Estória do céu

E

Não queria ser mestre nem ministro.

Dizia: “existem escolas demais para pouco ensino e igrejas muitas para pouca fé.” E afirmava: “ Só você pode estabelecer, para uso próprio, o que é certo ou errado, o que é bom ou mau.” E continuava de maneira enfática: “ Qualquer pessoa, eu inclusive, pode expor opiniões, mas cabe a você decidir se as aceita ou não”. E, nessa ocasião, terminou dizendo: “Tudo o que eu digo são apenas informações e, como tal, devem ser viradas, reviradas e estudadas com atenção porque você precisa conhecer bem o que tem em mãos para saber se quer guardar ou jogar fora. E preste atenção, o fato de que  quem está falando sou eu, é um professor, um religioso, um jurista, um livro antigo ou um panfleto novo não tem absolutamente nenhuma importância. Importa apenas se tem ou não valor para você.”

Nas reuniões, presididas por ele e assistidas por um grupo que oscilava entre vinte e trinta pessoas, os temas variavam de acordo com o espírito da turma. Um de nós dizia uma palavra que virava o tema do dia. Direito, Saudade, Vingança, Cosmo, Alegria e etc.,etc..

Havia dois assuntos que o Ow evitava. O céu dos cristãos, e ele próprio. Falou muito pouco a respeito de si mesmo.

O inusitado é que esta estória fala a respeito do céu. É simples e delicada como quase todas as potocas usadas por ele com a intenção de nos orientar a respeito de algo. Com esta ele tentou nos mostrar que precisamos ter certeza do que queremos. “Só estando certos de nossa meta poderemos avaliar as ofertas encontradas pelo caminho que, julgamos nos levará a ela”.

Achei a estória linda e hoje, lembrando-me dela, resolvi coloca-la à disposição de vocês.

-Era uma vez… – começou ele, – em que um velho, ou uma velha, um cavalo ou uma égua, um cachorro, ou uma cadela caminhavam por uma, ou um, estrada ou estrado… –

Parou, pensou um pouco e disse – esse negócio de politicamente correto pode ser muito bom, mas para contar estórias dificulta bastante… portanto, era uma vez um velho, um cavalo e um cachorro que caminhavam por uma estrada.. Rimos todos porque na reunião anterior o racismo com suas implicações havia sido o tema e um dos destaques foi “como agir para ser politicamente correto”.

Há muito, continuou ele, que o velho e seus amigos caminhavam e o cansaço só não era maior do que a fome e a sede porque, das provisões de boca, antes pequenas porções, depois migalhas, agora só restavam lembranças e, no cantil então, nem mesmo isso.

Caminhavam e, durante a caminhada, o velho, com palavras carinhosas e de conforto, ia animando o cavalo e o cão. Subiram montes, desceram encostas, passaram por vales e nem mesmo de longe viram água e alimentos. Calmo, sem perder as esperanças, ao acabar de subir um monte, o velho dizia: bom… Ainda não foi aqui… Certamente lá em baixo deve existir água…”, e assim que chegavam no “lá em baixo”,  sem mudar de tom dizia – “bom… mais adiante, com certeza…” e caminhavam.

Quando já estavam quase sem forças viram, ao longe, em um vale muito bonito, um grande portal, todo em ouro, rebrilhando ao sol. O velho, dando graças a Deus, exortou os amigos a caminharem mais um pouco. “Ali…” – repetiu ele – “com certeza, encontraremos água e algum alimento…” e, mais animado, à frente do cão e do cavalo, desceu a encosta e chegou ao portal.

– “E então, meu amigo…” – perguntou o porteiro quando o velho, o cão e o cavalo chegaram mais perto – “de onde vem?”

– “De um lugar tão distante que já nem mesmo sei se existe”.

– “E para onde pretende ir?”

– “No momento, a única coisa que nos interessa…”- respondeu o velho olhando, com alegria, para os amigos – “é um pouco de água e algo com que aplacar a fome”.

– “Além deste portal, como pode ver, é o céu,  há água e frutos em abundância. Você poderá matar a fome e a sede por toda a eternidade”.

– “Eternidade? Quer dizer que eu…  quer dizer que nós… nós estamos…?”

– “Estão.”

– “Mas há quanto tempo?”

– “Logo depois que vocês começaram a caminhada”.

– “Mas os três ao mesmo tempo? Como pode ter sido?”

– “Isso eu não sei, mas presumo que tenha sido algum tipo de acidente porque só acidentalmente três… ham… três seres morrem ao mesmo tempo num mesmo lugar”.

– “É, é possível… mas agora, se nos der licença… quer dizer… isso aí é o céu não é? Então, para entrar, nós teremos que passar por um julgamento, ou coisa parecida, não é assim?”

– “Olhe…” – disse o porteiro meio constrangido – “isto é o céu e, para entrar, não precisa nenhum julgamento basta estar aqui. Aquele que está aqui merece o céu. Não o merecendo não poderá chegar a este lugar, mas, por ordens superiores, a entrada é permitida somente às almas humanas… os bichos devem permanecer do lado de fora deste portal ”.

– “Ora essa, e quem deu essa ordem?”- quis saber o velho.

– “Quem mais poderia ter sido? Eu sou apenas o porteiro, recebo e cumpro ordens, nada mais”.

– “Mas, você disse que “aquele que está aqui merece o céu”, ora,  os meus amigos estão aqui e, além disso, são seres criados por…”

– “Olhe,” – cortou o porteiro – “peço-lhe que não insista”.

– “Está bem” – disse o velho olhando os amigos com desânimo – “se são ordens superiores…” – dentro dele, a fome, a sede e a fadiga faziam os frutos mais apetitosos, a água muito mais fresca e a sombra muito mais convidativa, mas a visão dos amigos, que não poderiam partilhar de todas as benesses existentes além dos portões do céu, e, mais ainda, a separação a que seriam obrigados caso ele entrasse, eram coisas que ele não poderia suportar.

– “Olhe” – perguntou ao porteiro – “posso ir lá buscar um pouco de água e alguns frutos para meus amigos antes de entrar em definitivo?”

– “Não. Uma vez ultrapassado esse portal não pode haver retorno, mas os seus animais…”

– “Amigos…”

– “Seus amigos ficarão bem, pode confiar em mim”.

– “Desculpe-me, eu sei que, por ser um anjo, o senhor deve ser confiável, mas… se eu e meus amigos não podemos ficar juntos eu quero, pelo menos, ter certeza de que ficarão bem e em lugar seguro. O senhor pode me mostrar onde e como eles vão ficar?”

– “Infelizmente não. Minha função específica é ficar aqui na portaria e orientar as almas que aqui chegam. Para cuidar desses bichos…”

– “Meus amigos.”

– “Para cuidar de seus amigos virá alguém, designado por meus superiores, que, naturalmente…”.

– “Mas isso aí é mesmo o céu?” – O velho não compreendia como é que no céu podia haver tanta burocracia. “Lá dentro” – pensava ele – “deve ter alguém capaz de sobrepor-se a essa ordem absurda. Mas se eu entrar para procurar esse alguém e não o encontrar não poderei sair e aí… meus amigos ficarão sós, famintos e sedentos” – pensou um pouco e decidiu – “ Diga a seu superior, com todo o respeito, que meu lugar é junto de meus amigos. Confiaram em mim, como eu confio neles. Por mais fresca que seja a água, por mais gostosos que sejam os frutos, por mais tranqüila que seja a sombra, eu não viveria em paz se não soubesse, com certeza, que essas coisas todas estariam também ao alcance deles”.

Recomeçou a andar.

Serpenteando pela encosta, a estrada, mais estreita, mais acidentada e mais íngreme, parecia querer faze-los desistir. O velho, porém, precisava encontrar água e algum alimento para seus amigos e isso o empurrava para frente. Cansados, caminhando devagar, o cavalo e o cão, seguiam o velho que, mais uma vez, esperançoso, disse: – “Bom, lá em cima encontraremos água…”- e, caminhando pensava: “Senhor, perdoai-me o não ter aceito a generosa oferta de água e alimentos que me foi feita há pouco mas, com certeza, sendo onisciente, Vos sabeis que eu não poderia abandonar meus amigos. Perdoai-me e, não por mim, mas por meus amigos, peço-vos que nos mostrais onde há um pouco de água para que possamos, após louvar-vos,  aliviar a sede e continuar nossa caminhada”.

Depois de um tempo o velho notou que quanto mais próximo do topo mais suave era o caminho, mais fácil o caminhar e mais linda a vegetação. No ponto em que a estrada vai se tornando plana, para depois começar a descer, uma porteira impedia a passagem. Além dela, aqui e ali, viam-se casas humildes, mas em muito bom estado de conservação. Antes da porteira, sentado em uma pedra, à sombra de uma grande árvore, um homem, de aparência humilde e idade indefinida, com um gesto convidou o velho ao descanso.

– “Me sentiria muito honrado se pudesse aceitar o seu convite, mas, preciso continuar a procurar comida e água para meus amigos”. Disse o velho.

– “Pode parar de procurar, pois basta passar por essa porteira e você estará no céu”.

– “No céu?”.

– “É, no céu. Em verdade você já chegou ao céu e passando a porteira vai se convencer disso. Mas entre e veja que, saindo da estrada e passando entre o abacateiro e a mangueira, há um caminho. Seguindo por ele você encontrará água e outros frutos além de abacate e manga. Vá, e se, depois de mitigadas a sede e a fome, ainda houver alguma pergunta, volte aqui e conversaremos”.

– “E meus amigos…?”

– “Pode leva-los e, se quiserem ficar por lá, pode deixá-los á vontade”.

– “A porteira…?”.

– “Está aberta, é só empurrar”.

– “Depois de entrar eu posso voltar e sair?”.

– “Eu acho que você não vai querer, mas se quiser pode”.

Passada a porteira o velho não teve mais dúvidas de que estivesse no céu. Já não existiam fome e sede, o desconforto havia desaparecido e os animais, seus amigos, afastavam-se parecendo compreender que eram livres e independentes. O velho voltou para agradecer e perguntou para que serviam as casas. “Parece-me que neste lugar elas são desnecessárias”.

– “E realmente o são, mas algumas pessoas sentem saudade do que deixaram e, chegando aqui erguem-nas para, logo depois, constatar que não precisam mais delas e deixam-nas ai. Outros chegam, moram nelas durante um tempo e, depois, vão embora”.

– “Muito bem, isto é o céu. Mas então o que é aquilo lá no vale?”

– “A entrada do céu”.

– “A entrada? Mas eu estou aqui exatamente porque me recusei a entrar por aquele portal, aliás, acho que vocês devem fazer alguma coisa para evitar que aquele… anjo? …continue ali tentando evitar que as pessoas cheguem aqui. Eu quase abandonei meus amigos tão cansado e faminto estava”.

– “Eu sei. E se você abandonasse seus amigos, seduzido pelo frescor da água ou pela beleza dos frutos, perderia o direito de entrar “agora” no céu e, o que é pior, seus amigos viriam para cá, mas você continuaria por muito tempo ainda a sentir fome, sede e desconforto até encontrar o caminho que, de novo, o trouxesse aqui”.

– “Então aquilo foi uma prova, um julgamento dos meus atos?”.

– “Não, nós sabíamos que você, para não abandonar seus amigos, não aceitaria aquela oferta. O julgamento de que você fala foi feito ao longo de sua vida e já sabíamos que você merecia o céu. Queríamos apenas que você aprendesse algo sobre si mesmo”.

– “Então as pessoas que morrem, mesmo que mereçam o céu, têm de passar por aquela prova?”

– “Acabei de dizer-lhe que aquilo não foi uma prova e sim um aprendizado, Entrando por aquele portal você aprenderia que não se abandona um amigo impunemente. Não entrando você mostrou que já sabia disso”.

– “Disse também que as pessoas chegam aqui e, depois de um tempo, vão embora. Embora para onde?”

– “Para os lugares em que são necessárias”.

– “Então há um lugar em que eu serei de alguma utilidade?”

– “Há, mas, por enquanto, junte-se aos outros que estão chegando e descanse. No devido tempo, você será chamado. Todos nós seremos”.

Sobre o autor

Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.

Por Antonio Naddeo

Categorias

Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.