Sô Ladislau e o Marruá

S

-Sô Ladislau é que ponhô essa história pra corrê mundo…

-Que história, Tonho? – perguntou o velho Jêsa.

-Essa uma do marruá, aquele touro, o Poderoso… O xodó do Tião Leitero!

O velho Jêsa, ainda com o copo entre o bebe e não bebe junto à boca, insistiu:

-Que história, Tonho? – e bebeu esperando resposta.

Tonho acabou de enrolar o cigarro, pôs na boca e, quando começou a caçar a binga nos bolsos, umas três mãos com bingas e fósforos acesos se aproximaram dele.  Todo mundo estava com pressa de ouvir a história do marruá, mas a educação mandava esperar que o Tonho começasse por si.

Tonho acendeu o cigarro, bateu a brasa com a unha do polegar e, satisfeito, começou:

-“Ocês alembra da estradinha do arto?  Pois é…  foi lá.  O Sô Ladislau envinha de perna esticada e, no que chegou no passo da capela, se benzeu quaije que sem disminuí a caminhada.  Já tinha começado a descê pros lado da Painera Grande quando teve que pará de chôfre.  Sem mexê o corpo, cô canto dos óio, ele viu atrás da capela as guarnição de um marruá e soube que era o excomungado do Poderoso só de escuitá os bufido. Sô Ladislau diz que pensô em corrê estrada abaxo, mas o disgramado do touro corria mais que ele. Pensô intão em intrá na capela e começô a se disvirá divagariiiiinho… não deu. O marruá parece coisa que disconfiô das intenção do Sô Ladislau, escarvô, bufô e carregô na dereção dele feito trem de ferro…”

Certo do efeito que a história causava, parou e sugou o cigarro com evidente prazer.  Soltou a baforada e ninguém teve coragem para soltar a respiração.  Ninguém é mentira.  O Gerônimo, que tinha parado de varrer o chão e estava debruçado no lado interno do balcão, não agüentou:

-E daí, seu Tonho, o marruá…

Mas calou-se quando o velho Jêsa, com firmeza, sussurrou:

-Gerômo!

-“O Sô Ladislau -continuou o Tonho- diz que num se apertô. Correu pros lado da perambera que ladeia a estrada do arto na frente da capela, virô de frente pro marvado, rezô uma oração prás alma e esperô. Quando ele parô, o marruá, que já tava uns deiz metro dele, tomém estacô: baxô a cabeça, escarvô o chão, bufô e ficô oiando o sô Ladislau. Sô Ladislau conta que os óio do bruto sortava fogo.  Ele conta tomém que caçô dum lado e dotro, mas não viu nem cerca nem árve que pudesse lhe dar guarida naquela hora ruim. O marruá, como que adivinhô que o Sô Ladislau num tinha nenhum jeito de escapuli e ficá fazendo careta, chamando ele de vaca véia, de cornudo e otros nome que o Sô Ladislau gritava pr’ele quando se via no seguro. Parece té que se riu dele quando bufô e começô a corrê outra vez atacando de frente. Sô Ladislau diz que oiô bem no fundo dos óio do marruá e que parecia que eles não ia mais pará de crescê.  Diz que, num átimo, a fera já tava com os chifre quase que no umbigo dele, e foi aí que o Sô Ladislau negaceou pras direita, mas jogô o corpo pras esquerda, e se rojô no chão o mais longe que pôde pra num se enredá nas perna e nos chifre do coisa ruim que era aquele touro…”

Nova pausa, nova caçada de binga, novos fósforos, nova baforada e o recomeço:

-“Sô Ladislau diz que só iscuitô um berro que vinha do fundo dos peito daquele tamanho de bicho e dispois a troada da caída na perambera.  Aí ele se alevantô…”

-Ele quem? – perguntou o Gerônimo.

-Jerômo, quem mais havéra de sê? – pergunta irritado o velho Jêsa.

-O coisa ruim? – quer saber, ainda em dúvida, o Gerônimo.

-“Não, que esse um – acudiu calmo o Tonho – tava rolando rebancera abaxo. Quem se alevantô foi o Sô Ladislau e ficô oiando aquele péba de bicho derriçando o mato de roldão com pedra, pau, puera e sangue.  Bateu na estrada de baxo e pareceu que ia pará ali. No escarmento, semelhô que ia se alevantá: pôde que num pôde, deu uns repuxão e como que pegô réiva de ouvi o Sô Ladislau gritando que ele era uma vaca véia e que num prestava mais nem prá córte quanto mais prá côrte, deu umas empinada e continuô rolando na perambera que tem do outro lado da estrada de baxo.  Rastando mato, pau e pedra, quebrando osso e esfolando o couro, lá se foi, o tinhoso, de cambulhada, inté chegá no grotão.  Diz o Sô Ladislau que num deu conta de nenhum sinal que dissesse ondé que caiu e parô de veiz aquele filho de um pecado.  Sabe só que o sem-sorte tava lá porque ouviu uns bufo de reiva, e de dor tomém – que o danado do marruá era forte!”

O cigarro tinha se apagado e outra vez foi aceso por mãos solícitas.

-“Diz o Sô Ladislau que, quando se virô pra agradecê as alma da capela, foi que viu o Tião Leitero.  Diz que o home tava mais branco que roupa de quaradoro, mas a mão dele, co’aquela faca de cabo de osso, era mão de magarefe… e aí foi a vez dele, Sô Ladislau, branqueá.  Os pensamento dele começô a corrê dentro da cabeça, mas num achava os caminho do gógó.  Foi quando o Tião falô, inda parado e oiando na dereção do umbigo do Sô Ladislau:

-Pena que ele num…

E, com voz mais sumida ainda, falô:

-Mas agora num tem mais jeito…

Deu um galeio naquela facona, jugô ela pro arto, aparô pela fôia e estendeu o braço, dando ela, de cabo, pro Sô Ladislau; e expricô:

-Judiação dexá aquele bicho, quase home de tão corajoso, morrê estrupiado daquele jeito! O senhor vai tê que acabá com o que começô.

O suspiro do Sô Ladislau balançô inté as fôia da Painera Grande.  Desceu a perambera, mas quando chegô lá os anjo que toma conta dos bicho já tinha ido lá cabá co sofrimento do marruá. Antão ele só teve que esfolá, separá os quarto e carreá a carne toda pra riba.”

Caçou a binga e teve tempo de encontrá-la: as mãos dos outros, antes tão solícitas com seus fósforos e bingas, estavam, agora, ocupadas com os copos.

E o Gerônimo, coçando a cabeça, fez a pergunta…

-Uai, mas… E o Tião Leitero?

Tonho acendeu o cigarro, guardou a binga, se ergueu do caixote, ajeitou as calças na cintura e, já quase na porta do armazém, falou:

-Tá convidando a gente pro churrasco…

Virou-se para sair, parou, tornou a olhar o pessoal e encerrou:

-Mas quem quisé tem que ajudá na coieita do milho amenhã, bem cedim!

Sobre o autor

Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.

Por Antonio Naddeo

Categorias

Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.