A Escada

A

De tão íngreme, assustava.

Colocou o pé direito sobre o primeiro degrau, mas reparou, ao olhar para baixo, que estava calçando os chinelos de solado. Pés inseguros, sobre solas de couro, em degraus encerados…  Encerados porque a Ivone achava que a cera era uma proteção contra cupins e a Nelí, assumindo o “achismo”, continuou encerando.

Voltou ao quarto, entrou e foi direto a cômoda, mas ao abrir a sapateira levou um pequeno choque. Havia muito espaço e pouco sapato.

– Falta…  Ah, sim, faltam os sapatos dela.

Passou a mão pela testa como se pudesse, com o gesto, apagar confusas lembranças em que pululam tubos, respiradores, soro pingando e uma demoníaca máquina que faz pi, pi, pi, enquanto solta um gráfico cheio de vales e montanhas desenhados em finas linhas negras.

Procurou o mocassim que a Ivone apelidara de “muxibinha” e que, em piso encerado, era mais seguro por ter solado de borracha. Olhou em baixo da cama, em baixo da cômoda, ao lado do cabideiro, sob criado-mudo, dentro do banheiro e nada.

– As coisas, nesta casa, estão mudando com muita rapidez! E não é só de lugar que estão mudando!

Sentou-se na cama e viu-se no espelho. Achou que a barba por fazer e os cabelos em desalinho acentuavam-lhe a magreza do rosto.

– Santo Deus! O ombro esquerdo está bem mais baixo que o direito. Defeito de postura ou magreza mesmo? Vai ver que a coluna…

Tentou elevar o ombro para acertar a altura dele com a do direito, mas aí foi o esquerdo que ficou mais alto. A camisa repuxada…

-Ah, é a camisa abotoada errado!

Levantou-se e, ainda de frente para o espelho, puxou a camisa, abriu-a, tornou a abotoá-la corretamente, enfiou as abas para dentro das calças, prendeu o cinto e…

– O que é mesmo que eu estava fazendo?

Quase chamou a Ivone, mas segurou-se a tempo. Mesmo que a chamasse ela não viria, não poderia vir.

– Quanto tempo faz? Hoje é… Ah sim, hoje já é o vigésimo oitavo dia do quinto mês, portanto quatro meses e vinte e oito dias! Diabos, tenho que acabar com essa contagem, com a lembrança daquele bendito pi, pi, pi, com…

Lembrou-se. Tinha decidido ir ao sótão e iria, custasse o que custasse. Queria rever as cartas, as fotos, as coisas que ela guardava lá. A escada metia-lhe medo, mas era preciso enfrentá-la. Sabia que quando chegasse lá em cima descobriria as razões do seu medo. Ao passar pela porta do banheiro, no corredor, os perfumes do xampu e do sabonete e o fervilhante ruído de água passando pela ducha, anunciaram-lhe a presença da neta Celí. Ele prosseguiu, viu a escada puxada para baixo e levou um tempo para lembrar que estivera ali fazia pouco e que tinha ido ao quarto para trocar o chinelo. Foi de novo em busca do muxibinha.

– Ivone me diria onde ele está, ou o que usar. A Nelí talvez soubesse, mas…

Ele não gostava de incomodar a filha. Levou um tempo procurado as meias, achou, vestiu, calçou os sapatos esporte e voltou. Quando ia passando pela porta do banheiro a Celí, envolta em um felpudo roupão rosa e arrastando uma espessa onda de perfume, estava saindo e quis saber o que ele ia fazer.

– Nada não, vou… han… Recolher a escada que seu irmão deixou puxada.

– Ué, – estranhou a neta – o Beto esteve aqui hoje?

Ele se embaralhou,

– Hein… Não, hoje não, ontem… É… É isso mesmo, foi ontem. Ontem ele puxou a escada.

Ela, decidida a vê-lo recolher “aquela coisa”, olhou-o meio desconfiada, atravessou o corredor e encostou-se na parede. Ele se rendeu. Destravou e girou a alavanca. A escada, deslizando sobre os encaixes e fazendo clec-clec, acabou por se ocultar em seu nicho na parede. Celí esperou até o último clec e foi embora. Agora, no corredor, só a mistura de perfumes, uma alavanca e um velho dando  bananas, resmungando e mostrando a língua para o lado por onde saiu a neta..

Voltou ao quarto, enviou um beijo ao retrato e desabafou:

– Sabe, meu bem, eu podia ter dito a ela que fosse à merda e me deixasse em paz; que eu ia subir de qualquer jeito; que nem ela e nem ninguém manda em mim, mas resolvi ceder senão ela comentaria com a Nelí, a Nelí comentaria com o Alvim e todos ficariam muito preocupados. Então, entrego a batalha erguendo a escada, mas continuo na guerra! E continuo com mais gana! Eu vou subir! Vou sim!

O desabafo deu-lhe um novo ânimo

– E quer saber? O melhor mesmo é tomar o café e ir jogar truco com aqueles patos da praça.

Saiu e cruzou com a Vanda que perguntou:

-E hoje, quer que eu o arrume seu quarto?

– Arrumar o que? A cama está esticada, a roupa suja no cesto e os sapatos todos na sapateira. Arrumar o que?

Sorrindo,  brincou:

– Qualquer dia desses eu o deixo desarrumado e aí você dá um jeito nele.

Na copa teve a sensação de um dejavu. Com pequenas variações, hoje como ontem e ontem como anteontem, viu a Nelí, pronta para sair, terminando de por a mesa; o Alvim acabar de tomar o café, por a xícara na mesa, e começar a correr porque hoje é dia de ele dar carona ao outros três do “Grupo dos Quatro”. – Nos outros dias ele corre porque quem vai dar a carona é o “chato do Carlão”, ou o “safado do Miguel”,ou o “babaca do Abílio”. – O Beto, mesmo afirmando ao celular: “não conte comigo, estou de férias”, também sairia e a Celi, depois daquele banho de perfume, não tinha, naturalmente, a intenção de ficar em casa. Todos sairiam.

Todos tinham coisas importantes para fazer. Todos menos ele, cuja perspectiva era dar um pulo até a praça e esperar que alguma das mesas precisasse de um parceiro. Nesse particular não tinha do que se queixar. Jogava bem e por isso era muito solicitado, porém o truco era apenas um entretenimento que preenchia o tempo, mas não o vazio. Aliás, nada havia que pudesse preencher o vazio. Nem mesmo no sótão. Lá jaziam coisas,  penduricalhos de lembranças, guizos que ressoavam e, ecoando,  tornavam maior o oco do peito.

Sentou-se. Seu copo, seu prato, seu talher, tudo separadinho…. a Neli quer me agradar, ou tenta evitar que ela, o marido e os meninos se utilizem de objetos usados por mim?. Hum… a Ivone saberia responder a isso. A Ivone, a Ivone, a Ivone… meu Deus! Eu era um completo Ivoneômano e não sabia. Agora, estou sofrendo a síndrome da abstinência. Só me faltam os tremores, suores e delírios… Não, os delírios eu tenho. Eu a vejo em tudo, sinto o seu cheiro em todas as coisas. Durante o dia fico esperando vê-la entrar na sala, ou na cozinha e percebo, à noite, o peso do seu corpo, ao meu lado, no colchão…

Sorveu de um gole o café que havia posto no copo e levantou-se.

Não adianta esperar que todo mundo saia. A Vanda já está aí, a Rosa deve chegar logo e ambas estão instruídas a me impedirem de subir por aquela escada. Isso sem contar com a Celi, que parece disposta a vigiar cada movimento meu dentro da casa.

Na padaria deliciou-se primeiro com um pedaço de caçarola italiana e depois com uma queijadinha.

– Ah se a Ivone me visse fazendo esta festa!

Pensou em comer também uma daquelas grandes e deliciosas bombas recheadas de doce de leite, mas achou que seria um exagero e pediu um café bem quente, bem forte e com bastante açúcar. A Cinthia, de dentro do balcão, provocou:

– Mais alguma coisa?

.- Pesou os frutos que escolhi?

Após responder que sim, a menina voltou a provocar:

– Mais alguma coisa?

-Quero sim, um sorriso e uma palavra amiga.

Riram. Ele sabia que essa era a resposta esperada. Passou pelo caixa, pagou o café, as frutas, foi para a praça e jogou truco. Distribuiu laranjas e maçãs e jogou truco, Bebeu do café que o Resende trouxera na garrafa térmica e jogou mais truco. O sol chegou a pino e ele foi almoçar.

– Agora uma rede, uma sesta com seresta, e, depois, aquela bendita escada.

Quatro da tarde. A rede é um sofá, até que bem confortável, a sesta não passou de um intermitente cochilo e a seresta ficou por conta dos ruídos vindos do televisor.

– A coisa pode ficar engraçada quando se cochila em frente à televisão. Na tela um apresentador e uma cantora. Ele  está dizendo que vão se casar, mas, no minuto seguinte, a cantora, de saia curtinha, está rebolando uma imensa bunda a frente de um grupo musical e, de repente, com voz masculina, ela grita: GOOOOOOLLLLLLL  é GOOOOLLLL e o enorme bumbum, dividido por escasso fio dental, vira uma bola, atravessa a tela e se transforma num carro acidentado em meio a uma grande avenida. Será que o bumbum-bola fez aquilo com o carro? Levo um tempo para compreender que, o que vi, foram cenas isoladas entre um cochilo e outro. Pior é quando, ao invés de televisão, o que estou assistindo são pedaços de conversas em família. Por exemplo, hoje à tarde, depois da sesta, eu estava lendo aqui na sala de estar, acordei e alguém estava dizendo: “ele pode ser posto no quarto de despejo” é pequeno demais para mim, pensei. Voltei à leitura, tornei a acordar e era a Celi falando: “ele tem que ir embora.”, não vou não resmungo, esta casa ainda é minha! Volto à página dois, torno a acordar e é o Alvim… – Poxa! O Alvim já chegou? – chegou e está decretando: “ele fica, mas vai ser tratado só com ração e angu”. Sinto um frio na espinha. Detesto angu e acho que não vou ser capaz de engolir ração, depois descubro; para o quarto de despejo vai o aparelho de ginástica; quem vai embora é o amigo do meu neto Marquinho, o Paulinho que está sentindo falta da mãe e, finalmente, o infeliz comedor de ração e angu é o gatinho que apareceu aqui e conquistou a família, incluídas aí a Rosa e a Vanda. Acordo com a voz da Neli me chamando para jantar. Todos já foram para a copa. Marco o livro, – há quatro dias estou na página dois – guardo-o e vou. Minha cadeira, meu talher, meu prato… Hum.

No lusco-fusco, em verde fosforescência, viu a hora.

– Quatro e meia? Ivone já é… Han?… Mas, foi agora mesmo que eu me deitei! Ah, não tomei o remédio de dormir que a Neli me deu e por isso passei a noite toda em claro. E ela recomendou tanto! Bom, não vem ao caso. Tenho dormido pouco, mas estou me sentindo bem e isso é o que importa. Tai, quatro e meia, uma boa hora para enfrentar a escada e o medo dela.

Levantou-se, foi ao banheiro, desconfiou da cor do xixi, acendeu a luz e, ao ver que, realmente, a urina estava muito escura, resolveu que perguntaria ao Dr. Orlando o que significava aquilo. Deu a descarga e se arrependeu porque o barulho poderia acordar alguém. Lavou mãos e rosto, apagou a luz do banheiro, estendeu a cama, vestiu o roupão por cima do pijama, ia saindo do quarto e parou.

– Alguma coisa está errada!

Voltou, fechou a porta e viu! O muxibinha estava lá! Do jeitinho que a Ivone o guardava: penduradinho no cabide que fica oculto quando a porta esta aberta. Trocou o chinelo pelo muxibinha e foi. Puxou a alavanca e a escada começou a descer enchendo o silêncio com um clangor infernal. A trava, batendo em cada dente da cremalheira, lembrava uma metralhadora de um ponto vinte a destruir toda uma esquadra de tanques de guerra. Assustado, começou a voltar, quase correndo, para o quarto.

Poxa! Eu fiz aquela escada descer ontem mesmo… Ou foi anteontem? Ah deixa pra lá, o que importa é que ela não fez tanto alarido, mas agora…

Já estava chegando ao quarto quando notou que a escada tinha parado de fazer barulho e, o que era mais importante, a casa continuava em silêncio. Estava esperando ouvir portas batendo, gente gritando e correndo, mas, estranho…

– Oba! Vai ver que todo mundo morreu… Ou então não tem ninguém em casa! Quinze pras cinco! Acho que posso ir ao quarto do Beto ver se ele está lá.

Foi. O Beto não estava.

– Bom, talvez o cara tenha passado a noite fora, afinal ele esta de férias. E o Marquinho?

Foi. Também não estava

– Ué… Esse não tem autorização para passar a noite fora! Ah, deve ter ido pra casa do Paulinho. Será que a Nelí e o Alvim…?

Pé ante pé chegou perto da porta e colou o ouvido nela. Nada. Pensou em checar o quarto da Celi, mas desistiu.

– Não vai ser nada bom se me surpreenderem auscultando aquela porta.

Desceu as escadas e foi para a cozinha. Cinco horas. Silêncio.

Quis fazer um café, mas no armário em que a Ivone guardava as coisas com que fazê-lo tinha, agora, um monte de panelas. Abriu outra porta e descobriu os condimentos. Na terceira encontrou farinhas, uma caixa de maizena e…

– Oba, um pacote de biscoitos!

Procurando um prato para por os biscoitos, abriu mais uma porta e quase teve uma síncope. Começaram a cair vasilhas de plástico de todos os tamanhos e formatos. O barulho daria para acordar qualquer um que estivesse na casa, mesmo que morto, mas o silêncio perdurou após cair a última vasilha. Tentou coloca-las de volta, mas era pouco o espaço e então, escolheu uma, pôs nela os biscoitos e deixou as outras sobre a mesa.

No quarto sentiu-se em um mundo conhecido. Ali ele sabia exatamente onde estava cada coisa. Entre um biscoito e outro, escolheu e pôs sobre a cama, calça, camisa, meias, cinto… Faltava um tróço…

Tirou o roupão, o pijama, dobrou-os, pôs ambos sobre o travesseiro, tirou o muxibinha e quando ia vestir as calças não conseguiu. Faltava…

– Oh, diabos… Falta a cueca!

Foi à gaveta onde estavam as cuecas, abriu e viu… As roupas de cama.

– Mas onde estão… Poxa, quase seis horas e eu aqui, pelado, abrindo e fechando gavetas em busca de um tróço que eu devia saber exatamente onde está. Ah! Olha elas aqui. Mas estas são as usadas! Ou não?

Chegou uma bem perto do nariz e cheirou..

– Ah! Ainda bem, são as limpas.

Vestiu-se. Orgulhava-se de, com a idade que tinha, não precisar sentar-se ou apoiar-se nem mesmo para vestir as meias…

– A gente “veste” ou “calça” as meias?

Indeciso também entre o muxibinha e o esporte, calçou o chinelão, pegou a vasilha e voltou à cozinha.

– Poxa, seis e dez já? E cadê esse povo que não levantou até agora? A esta hora os ritos matinais deviam estar em pleno andamento! Só se o pessoal todo já foi embora após cumpri-los. Bom, se estou sozinho…

Tornou a encher a vasilha com biscoitos, subiu e foi para o corredor da escada. Estranhou que ela estivesse descida, mas achou bom. Esticou o braço e equilibrou a vasilha dos biscoitos num dos degraus superiores. Ali seria fácil pegá-la quando chegasse lá em cima.

O pé direito no primeiro degrau, as mãos nos corrimãos e um pequeno esforço para puxar o corpo. O pé esquerdo no degrau de cima, mudar as mãos de posição, um novo puxão e o pé direito vai para o terceiro degrau. Olhou para baixo e ficou um pouco abalado. Estava calçado com o chinelão de sola de couro. Novo puxão, o pé esquerdo no quarto degrau…

Dez e meia da manhã. Voltando do hospital, a Nelí repetia as palavras do Dr. Orlando:

– “Ela morreu às seis e quinze da manhã, da manhã de hoje”.

E se perguntava:

– “Como é que eu vou dizer isso a ele? Como é que se diz a alguém: – Papai, a mamãe morreu às seis e quinze da manhã, da manhã de hoje”.

Entrou. E andando pela casa repetia: “seis e quinze da manhã, da manhã de hoje”. Procurou-o na cozinha e lá ficou intrigada com o desarranjo, mas lembrou-se que no dia anterior tinha dispensado a Wanda e a Rosa, não precisaria delas hoje. Na sala de estar ele não estava, mas tinha que achá-lo para levá-lo ao hospital. “… as seis e quinze da manhã…”  Subiu, procurou-o no quarto, “… da manhã de hoje…”, foi ao terraço, voltou e parou de repetir a frase porque seu cérebro, por um instante, ficou vazio. Tal como tinha visto a mãe, há quase cinco meses, via, agora, o pai caído ao pé da escada. Ao redor uma porção de biscoitos. No rosto, iluminado por um quase sorriso e uma expressão de grande paz, os olhos, parados, fixavam, sem ver, a porta do sótão ainda fechada, no topo da escada.

Sobre o autor

Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.

Por Antonio Naddeo

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Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.