Os mestres

O

Já disse aqui, varias vezes, como eram as reuniões promovidas pelo mestre Ow durante seu convívio conosco. Com as “potocas” ele divertia enquanto ensinava porque – palavras dele – “os que não aproveitam o ensinamento podem, pelo menos, se divertir”.

Na reunião de 09 – 12 – 1993 ele nos explicou as razões de não gostar que o considerássemos um mestre. “Era, ainda,” – de novo, palavras dele, – “um perguntador” e, para ilustrar, contou-nos como um “perguntador” passa a ser “mestre”.

Era uma vez um homem… Ele vivia em uma pequena cidade, quase vila ainda, onde era acatado e reconhecido como um homem sábio. Os moradores do lugar, gente simples, recorriam a ele para dirimir dúvidas e resolver problemas  e, como sábio que era, o Homem sempre encontrava uma resposta satisfatória a quem o procurasse.

Como agradecimento deixavam-lhe galinhas, ovos, leitões, feijão, arroz, trigo, verduras e outros agrados. O Homem os aceitava porque, embora sadio e resistente, não podia, com as próprias mãos,  prover a sua mesa já que quase todo o seu tempo era dedicado à observação e ao estudo (perguntação) de onde tirava a sabedoria aplicada na solução dos problemas a ele confiados.

A vida do Homem, na pequena cidade, era mansa e tranquila até que um dia… Na vida de todo o sábio há, sempre, um dia de ignorância…

E, por ter começado igual a todos os outros, o Homem não tinha como saber que aquele era o seu “dia de ser ignorante”. Levantou-se cedo, preparou e tomou o café, saiu para uma caminhada pelo campo, ouviu e observou os pássaros, animais, plantas e flores… Maravilhou-se com as cores do alvorecer, voltou para casa, escolheu um entre os muitos volumes que o esperavam na estante, acomodou-se na poltrona preferida e ficou, por muito tempo,  mergulhado na leitura.  Pouco depois do frugal almoço, quando ia novamente “apoltronar-se” para ler, ouviu palmas e foi ver quem era. Um casal de jovens, desconhecidos para ele, olhava-o do portão com ansiosa curiosidade. Convidou-os a entrar, ofereceu-lhes cadeiras e, enquanto tomavam o café servido pelo Homem, explicaram que no lugar de onde vinham chegara a fama do sábio que era e como resolvia todos os problemas a ele propostos. Caminharam, então, muito tempo para vê-lo, pois tinham, eles mesmos, um problema para o qual não conseguiam solução.

E o que os aflige? Quis saber o Homem.

Confusamente olharam-se, cada um com a esperança de que o outro se animasse a falar, mas depois de pequena pausa, começaram ao mesmo tempo e de novo calaram-se. A um novo entre-olhar-se, ela, carinhosamente, pousou a pequena mão no braço dele indicando que permaneceria calada, mas que estaria ali pronta a ajudá-lo.

Pequenos gestos como aquele, a ternura dos olhares que trocavam e o modo com que se davam as mãos, mostravam ao Homem que aquele casal de jovens nutria-se do amor que um devotava ao outro.

Fome não passavam e isso era atestado pelos corpos sadios e pela matula ainda bem provida após a viagem. Viagem longa, disseram, e deve ter sido, mas, deduziu o Homem,  os vestígios deixados por ela não apagavam os claros sinais dos cuidados dedicados a si e aos objetos de que faziam uso e isso o deixava mais curioso. Que problema poderia ter a um casal, recém-saído da adolescência e que, aparentemente, tinha liberdade de escolha, uma educação bastante esmerada, que se amava e, acima de tudo, demonstrava elevada compreensão um do outro?

Senhor Sábio, – começou o rapaz – nos temos uma terrinha pequena, mas muito boa graças a Deus. O trabalho é muito, mas as colheitas dão bem pro nosso sustento e ainda podemos fazer uma prevenção para o futuro mesmo depois de ajudar nossas famílias. Juntos, ela e eu construímos a casa. Juntos escolhemos os moveis, os trens de cozinha e juntos trabalhamos  a terra… Juntos a gente faz tudo… menos morar…

Ela, cabeça baixa, olhava as próprias mãos agora pousadas no colo. Ele, findo o discurso, baixou também os olhos como se buscasse, nos desenhos da toalha de mesa, a resposta para o problema que o universo lhe impunha.

O Homem esperou. O problema estava ali e era representado por alguma coisa que os impedia de morar juntos.

Não vê o senhor – disse ela erguendo os olhos para o Homem – eu quero morar com ele não pela casa, nem pelas terras, mas porque eu gosto de ver a felicidade dele quando a chuva cai depois que a gente arou, destorroou e semeou a terra. Gosto de ver a alegria que ele sente quando o que plantamos começa a despontar no chão e vai crescendo com a mesma força do amor que a gente sente um pelo outro. Gosto da sensação que sinto quando, de tardinha, a gente vai para casa e, juntos, preparamos a janta, agradecemos a Deus e, olhando um para o outro, comemos os frutos do nosso trabalho… Mas daí a pouquinho morro um tiquinho quando o deixo só, com a cara mais triste desse mundo, e saio para ir para a casa de meus pais. Só não morro de vez porque sei que no dia seguinte, bem cedinho, vou correr para a “nossa casa” e vou encontrá-lo já na porta, todo cheio de risos me esperando.

O Homem não se aventurava a conjecturar sobre o que poderia estar impedindo a consumação daquela união quase perfeita e esperou. Não foi preciso esperar muito.

Faz mais de ano que estamos assim, monologou o rapaz quase que numa queixa. Não vivemos juntos porque ela diz que não quer morar comigo sem casar, mas não quer casar por causa da minha religião…

Ah! Ali estava! – Pensou o Homem.

Claro! – Atalhou ela vivamente – eu tenho fé é na minha religião e religião é fé, não é?

Pois é, e eu tenho na minha – disse o rapaz cruzando os braços e proclamando assim ausência de culpa.

Religião – disse ela projetando o corpo para frente e olhando o Homem como se esperasse confirmação – tem que ter mandamentos bem claros pra gente não se enganar e poder viver sem cometer pecados, não é mesmo?

Mas viver dentro da lei é pouco – e a voz do rapaz assumiu um tom professoral – é preciso acreditar em Deus. Saber que Ele esta iluminando a gente e a minha religião ensina isso.

A lei é o caminho que leva a Deus – sentenciou ela – e viver dentro da lei é caminhar para Deus.

Deus é o caminho – rebateu ele – e estar com Deus é estar no caminho…

O Homem movimentou-se e isso pareceu um sinal para que se calassem. Ambos o olharam esperando dele as palavras que mudariam suas vidas, mas ele apenas se levantou e foi até a janela. Olhou as árvores que crescem, frutificam e espalham suas sementes sem nenhuma preocupação com Deus. Olhou os pássaros que comem os frutos das árvores sem se perguntar quem os colocou ali à sua disposição e nem indagam de onde vieram as asas com que voam em busca desses mesmos frutos. Olhou para mais longe, para as montanhas que, ao longo das eras foram se formando a custa das dores da terra, mas não sabem e nem procuram saber quem provoca tais dores e contrações. Olhou para o rio, pequeno e marulhante em sua nascente na montanha, mas engrossando a cada tributário ao longo de suas curvas. Viu, em uma curva próxima da casa, as águas que se juntariam às de outro rio para, finalmente se fundirem com as do mar e, purificadas,  voltarem, na forma de nuvens e chuva, ao topo da montanha. E não ocorre, ao rio ou às águas, ou às nuvens, perguntar porque são assim. Como explicar e fazer, com poucas palavras, aquelas crianças compreenderem que uma vida honesta e sadia como a que viviam valia por todas as religiões? Tinham encontrado, embora ainda não soubessem, o que eles e milhares de outras pessoas buscavam, mas como fazê-los compreender isso? Voltou-se para os dois. Ainda o olhavam ansiosos.

A minha religião é…

Não! Eu não preciso saber qual é a sua ou a dela. Quero saber outra coisa.

Se eu disser que uma é a melhor aquele que estiver na outra vai mudar?

O casal se olhou. Cada um buscando forças no outro para decidir.

Mas o Homem foi mais incisivo. Se eu disser que a dela é melhor você vai mudar?

Sim senhor.

E você? Se a religião dele for melhor, você muda?

Hei de mudar, sim senhor.

O Homem carregou bem o semblante e, com um ar bastante severo disse – Então ouçam: os dois vão mudar.

Ué, – perguntou o moço – viver, cada um, na religião do outro?

Mas aí – acrescentou ela – vai dar tudo na mesma! Eu vou dizer as coisas que ele diz hoje e ele dirá as que eu venho dizendo e tudo vai…

Não! – Cortou o Homem – Seria ótimo se isso pudesse ser feito.  Cada um de vocês poderia comparar e finalmente escolher a melhor, mas vocês não têm tempo e correriam dois riscos. Primeiro, durante o tempo de aprendizado poderia acontecer alguma coisa capaz de separá-los e, segundo, se os dois considerassem melhor a religião do outro ficariam outra vez separados querendo que o outro voltasse. Vocês confiam em mim?

Sim – responderam esperançosos.

Então, à partir de hoje, vocês viverão juntos, e juntos vão procurar uma terceira religião que considerem boa para ambos e, quando a encontrarem, poderão se casar e batizar os filhos que, naturalmente, já terão nascido.

Olhavam-se. Um misto de alegria e dúvida espalhado nos rostos.

Olharam-no – Mas…

Espere! Voces não estarão em pecado. Só está em pecado aquele que não observa as leis de Deus codificadas por uma religião. Voces acabam de abandonar as religiões que professavam e com elas as leis que seguiam, portanto, juntando-se, amando-se e vivendo como têm vivido não estarão transgredindo nenhuma lei até encontrarem uma religião em que os dois acreditem e passem a viver segundo as leis impostas por ela.

Olhavam-se e agora a certeza de que poderiam viver juntos sem medo de ofender a Deus iluminava-lhes os rostos.

O Homem foi até a cozinha e trouxe algumas coisas com que acabou de encher o embornal do rapaz, mas, como bom hospedeiro, perguntou se não queriam ficar e descansar até o dia seguinte quando então sairiam bem cedo.

Não! Não queriam. O desejo de rever a casa, onde agora iam poder ficar juntos dias e noites, era bem mais forte do que o cansaço, Já no portão despediram-se e, banhados pela luz da tarde, puseram-se, felizes, na estrada.

Têm muito a caminhar e eu também, pensou o Homem. Voltou para dentro, calçou as sandálias de andarilho, pegou algumas provisões de boca e se pôs a caminho.

O Ow calou-se e o silêncio que se fez durou alguns instantes. Por fim ele perguntou: Alguém ai sabe qual a verdadeira pergunta proposta pelo casal?

Silêncio e espectativa.

A pergunta é: “Os caminhos do Homem devem passar pela porta de alguma Igreja”? E, antes que alguém dissesse alguma coisa, ele continuou: Para que o perguntador passe a ser um mestre ele deve encontrar essa resposta, mas para encontrá-la há que responder duas novas perguntas: “Onde” e “como”. E, após pequena pausa ele finalizou: “Caminhando e peguntando”.

Sobre o autor

Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.

Por Antonio Naddeo

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Antonio Naddeo

Há 68 anos, em 1950 surgia o ator, moldado até então pelas máquinas em uma indústria de cartonagem. Aos 16 anos passa a ser moldado pelo palco, pelos scripts e por uma incansável vontade de aprender.