Ei… ei… ei… calma, calma. O que é que eu vou escrever?
“Você” vai escrever?
É. Não sou eu que escrevo? Não sou eu que, deslizando sobre o papel, vou deixando traços que, aos poucos, vão se transformando em letras e palavras?
Exatamente.
E então?
Então o que?
Não sou eu que escrevo?
Ora, coloque-se no seu devido lugar. Você é “mero”, ouviu bem? Mero instrumento e nem é dos melhores. Já ouviu falar de computador?
E o que é o computador senão a ampliação da lapiseira?
Ah! Isso é loucura, megalomania. Daqui a pouco você vai me dizer que é o Dante Alighiere ou o Cervantes Saavedra das lapiseiras.
Claro que não.
Ah.
Eu sou muito mais que isso.
Eêêêêh.
Tenho em meu grafite, ou mina como vocês dizem, todas as palavras de todos os idiomas e dialetos já concebidos na face da terra e até os que ainda estão por ser. Todos os traços de todos os engenheiros e construtores, ou inventores, estão contidos em mim. Não há forma, ser, ou som que não esteja, latente, em minha ponta.
Som?!?
É… Você nunca viu o gráfico produzido por um som, ou uma pauta musical? E então? Continuo sendo “mero” instrumento?
Não só um mero instrumento, mas um instrumento com uma superlativa mania de grandeza.
Ah, por falar nisso, eu jamais seria Dante ou Cervantes; seria talvez a Beatriz ou a “bela Dulcinéia” (que, por sinal, não tinha nada de bela. Era mesmo uma gorda e feia camponesa). Esqueceu que eu sou “a” lapiseir”a”? Mas, nós vamos ficar nesse papo inconsistente ou vamos pôr alguma coisa importante nesse papel?
Com certeza você já está bolando um livro. Quem sabe um compêndio sobre a “sublime arte de escrever”?
E porque não? Você ouviu o que eu disse? Shakespeare acaso não arrancou de mim os Capuleto, os Montechio, as feiticeiras, os Henriques e tantos outros?
Não.
Não?
Claro que não. Foram arrancados de um cérebro extremamente privilegiado.
Ah, está bem. Então me explique o que é escrever.
O que é isso? A Escolinha do Professor Raimundo?
Olha, eu já perguntei três vezes, vá lá a quarta. Você quer que eu diga algo importante ou ficamos nessa estéril e tola discussão?
Só quebrando mesmo!
Não faça isso! Lembre-se que eu sou um presente de seu filho Átila; e sabe Deus a falta que eu fiz a ele.
Não estou dizendo? Ah! Está bem, vamos lá. Escrever é: verbo transitivo direto; representar por meio de escrita; Redigir ou compor obra literária, científica, etc; Exprimir-se por escrito em; Gravar, insculpir, inscrever; Descrever ou narrar por escri…
Hum… Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa. Aurélio, o da Folha.
É isso mesmo! E eu acrescentaria: escrever é fazer deslizar sobre o papel uma lapiseira, presente de meu filho, desenhando traços que formam letras e palavras…
Quem disse isso fui eu.
Foi, mas “esqueceu” de mencionar o fato, “quase sem importância”, de que há um “fazer” aí; e quem “faz” deslizar?
Você sabia que está usando uma figura geométrica?
Como assim?
Está usando a tangente como saída.
E eu quero sair de que?
Está fugindo à responsabilidade de ter que decidir o que vamos escrever.
Suponha que eu queira escrever um livro.
Muito bem. Primeiro temos que decidir o que queremos dizer, se é que temos algo que valha a pena ser dito.
Podemos falar sobre as injustiças…
Não.
Não por quê?
Não existem “injustiças”. Existem falhas na aplicação da justiça.
Então falemos da justiça ou, da ausência dela.
Está bem. Vamos falar de fatos reais ou criamos situações fictícias para expor nosso ponto de vista?
Fatos reais. A ficção pode parecer mentirosa.
Você acha? Você diria que as parábolas cristãs são mentiras?
Eu não disse que a ficção “é” mentirosa, eu disse que pode parecer.
Bom, ficamos com: fatos reais. Que tipo de linguagem escolhemos? A jornalística, a cinematográfica, a teatral, a narrativa…
A que melhor se adapte à nossa indignação.
A discursiva. Então temos: Um: vamos escrever um livro. Dois: queremos mostrar as falhas da justiça. Três: queremos usar uma linguagem que nos permita mostrar a nossa indignação. Quatro: usaremos fatos reais. Só mais uma ou duas coisinhas. Em que época e local situaremos nosso livro?
Claro que falaremos da atualidade, sem contudo, esquecer o passado próximo ou distante. Local o Brasil, mas podemos resvalar, vez por outra, nas Tchetchenias, nos Irãs e nas Áfricas da vida.
Abrangente heim?
Bom, a injustiça… digo, o crime é universal, não é?
Infelizmente, mas de que criminosos falaremos? Sim porque a lista de delitos é extensa, como extensos também, são os códigos penais.
Abordaremos os que nos pareçam mais comuns por sua constância e nocividade.
Olha, você está falando de corrupção. É, ao mesmo tempo, o mais comum e o mais nocivo.
Ótimo, falemos de corrupção.
Bom, agora temos: Primeira ficha: “A Corrupção no Brasil.” Segunda: Os efeitos da corrupção nas diferentes camadas sociais brasileiras. Terceira: A corrupção no exterior e seus efeitos.
Peraí. Pra quê esse monte de fichas.
Monte? Ainda não falei dos arquivos e pesquisas sobre o passado, das classificações dos crimes, da diferenciação entre costumes.
Diferenciação entre costumes?
Claro! O que para um povo é crime para outro pode ser apenas um costume. Não falei dos livros sobre direito que devemos consultar…
Mas vamos escrever um livro, não defender uma tese.
De pleno acordo, e é por isso que eu estou sendo pouco exigente.
“Pouco exigente”?
É!
Porca miséria. Não quero nem pensar no que você pediria se fossemos defender tese.
Pois é. Depois de abertas as fichas vamos sair a campo em busca de informações. Afinal não queremos proferir calúnias, não é mesmo?
Hum…
Se, e quando, dissermos que alguém é corrupto é porque teremos provas insofismáveis e irrespondíveis da corrupção.
E onde acharemos tais provas?
Olha, alguns amigos nos lugares certos, um pouco de sorte e muito trabalho, mas muito trabalho mesmo. Podemos começar com esse último incidente entre policiais militares e os “sem-teto” que invadiram uns apartamentos quase prontos e já destinados a outros “sem-tetos”. A ordem de reintegração de posse, obtida pela municipalidade, ou o estado não sei, acabou provocando a morte de dois ou três sem-teto, está lembrado?. Muito bem, então só aí
temos três dúvidas a serem resolvidas. Os prédios invadidos eram da prefeitura ou do Estado? O número de mortos, dois ou três? E feridos?
Só isso? Ah, bobagem, qualquer jornal ou noticiário de tevê vai nos dar essas respostas.
Muito provável. Mas confiável?
Não?
O que é que você acha? Até que pode, mas não seria melhor promovermos algumas investigações? Aí saberíamos, de quebra, quem mandou aqueles soldados; porque não lhes deram ordens para portarem escudos; porque os sem-teto não atenderam a ordem judicial… Vê? São muitas as perguntas a serem respondidas antes que se possa emitir um juízo consciente, capaz de apontar causas, culpados, conseqüências, vitimas…
Tá bem, tá bem… que tal se em vez de um livro sobre crimes e leis, escrevêssemos uma ficção?
Podemos. Que tipo de ficção?
Ih! Lá vem você.
Claro, você não pode simplesmente pegar a lapiseira – eu – colocá-la sobre o papel, esperar que ela deslize e recolher ao final, páginas e mais páginas de uma nova “Divina Comédia” ou de um “Paraíso Perdido”.
Eu não sou tão burro.
Nem eu disse que era, mas…
Mas… o quê?
Calma. Eu estou do seu lado.
Não parece.
Mas estou. Vamos lá. Que tipo de ficção?
Científica.
Ixe!! Um romance seria mais fácil, mas tudo bem. Que tipo de ciências vamos abordar e sob que ângulo?
A cosmonáutica.
Ambicioso você hein? Mas está certo. Vamos abrir algumas fichas.
Fichas?
É, fichas.
Pra quê?
Ora, antes de mais nada, precisamos saber o que já existe de concreto sobre o assunto, depois vamos saber a respeito das especulações, das probabilidades, das dúvidas e assim por diante. Carl Sagan, por exemplo, estudou em profundidade esse tema e Isaac Aisimov deixou vários livros a respeito. De Aisimov há um em particular que pode nos ajudar muito. É o “Colapso do Universo” em que ele expõe, com muita clareza, os conhecimentos que o homem atual tem do universo.
Hum… perdi o… o… embalo.
Como assim, perdeu o embalo?
É… perdi… Eu estava pensando em fazer um livro, um romance, sei lá, assim, mais rapidinho.
E ganhar um dinheirinho…
É… quero dizer…
E cometer mais um crimezinho…
Crime?
De estelionato. Vender gato por lebre.
Não, isso não que eu não ia prometer nada além do que eu pudesse escrever.
Você ia dizer, honestamente, que o seu livro é uma porcaria?
Não, isso também não.
Ótimo. Como é então que você pretende vender esse livro, ou romance, obscuramente classificado de: “assim mais rapidinho”?.
Eu pensava em me sentar e escrever coisas que me viessem à cabeça, sem maiores compromissos com a verdade.
Mas na ficção o compromisso não é com a verdade. É com a coerência. Imagine-se dizendo que “uma nave desloca-se no espaço em direção…” à quê? Com que velocidade? Sim porque “o comandante dessa nave tem que estar na…” onde? “às” o quê? Horas? Vê quantas informações você teria que pesquisar? Ou você pretende pôr uma nave interestelar andando por lugares que você conhece? Deslocando-se por exemplo, da praça Sete até a estação Rodoviária?
Olha. Quer saber duma coisa?
Não! Mas você vai dizer assim mesmo.
É… quem precisa de queimar pestanas, fazer pesquisa, acumular fichas e não sei mais o quê, tendo uma lapiseira Platoniana como você?
Obrigada pelo elogio, mas prefiro pensar que estou mais próxima de Diógenes de Sínope. Ele procurava o homem honesto e eu procuro a verdade.