Cumprindo velha promessa,
tio Miro me deu a faca,
uma lâmina forjada e, a quente, temperada.
No cabo, lavrado em chifre, finamente
elaborados em relevos de metal
o São Jorge em um dos lados e no outro o Dragão.
Não tinha, a Santa Lança, do lado branco do cabo,
como atingir o Horrendo no oposto e cinzento lado.
Aquela separação me pareceu mau agouro,
pois, se a lança do Guerreiro não pode alcançar o Mal
quem poderá obrigá-lo a voltar à grande caixa
de onde o tirou Pandora?
No aconchego da bainha, a pender do cinturão,
ao lado do “trinta e oito” com quem entoou conversa,
a lâmina azulada que separava um do outro,
o São Jorge e o Dragão,
com sua voz sibilante falou de cortes e furos
por onde a vida se esvai
em vermelho fio vivo encharcando o chão da liça
e deixando lividez, silêncio, inação e, às vezes,
um desejo de vingança, de desforra… de justiça.
Rodando o próprio tambor, onde trágicas promessas –
seis ao todo – dormitavam, o trinta e oito responde:
Não pouca força se exige do braço que te arrima
quando o anima tu cortas com tua lamina fria.
Eu não, basta-me um indicador
que, com suave pressão,
acionando o meu gatilho, provoca a explosão e ejeta
a mensageira fatal;
a funesta portadora da consternação, da dor.
Nem sempre a rombuda fada chega aonde o dedo quer,
mas onde quer que ela chegue, ligeira, de afogadilho,
havendo vida é o fim…
Ou, quem sabe, um recomeço.
Já cansada e sonolenta, na bainha se aninhando,
disse a faca num bocejo: “Sim, talvez, um recomeço”.
E com a aba do coldre se cobrindo e divagando
o revolver ruminou: “Queira Deus… um recomeço”.
Na verdade não era uma faca e sim um pequeno canivete cujo cabo de madeira trazia, em cada um dos lados, um decalque de São Jorge. Meu tio Ângelo o trouxe de Aparecida do Norte… Eu teria, então, uns dez anos. Por onde andarão? O tio, já morto, e o canivete, perdido… Deus sabe onde!